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Caroline Mesquita: Astray (Prologue)

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Maria Beatriz Marquilhas

But that joke isn’t funny anymore

It’s too close to home

And it’s too near the bone

Morrissey

 

Astray assinala a estreia da artista francesa Caroline Mesquita em Portugal e divide-se em dois capítulos expositivos: o primeiro — o prólogo desta narrativa — tem lugar na Kunsthalle Lissabon, e o segundo inaugura a 16 de Março na Galeria Municipal do Porto, com curadoria de Sofia Lemos. Astray (Prologue) é um acontecimento no espaço e implica um exercício de contenção por parte da artista que nos fornece a quantidade mínima de informação necessária para provocar no visitante uma inquietação persistente.

No piso subterrâneo, o chão abateu, dando origem a uma enorme concavidade no interior da qual se encontra um estranho objecto cilíndrico semi-desenterrado. A sua escala não é a humana e a sua cor ferrugenta sugere marcas do tempo. No entanto, as suas formas são industriais, quase futuristas. Poderia tratar-se de um míssil, de uma pequena e obsoleta nave espacial perdida no tempo e no espaço, ou de um depósito utilizado na produção agrícola semi-industrializada. Talvez estejamos perante um transporte acidentalmente desviado [astray] da sua rota inicial, mas, nesse caso, qual seria o seu destino? As conjecturas multiplicam-se, absurdas e contraditórias. O impacto terá partido o mármore em largos pedaços, cuja brancura contrasta com o castanho da terra que vemos em abundância no interior da abertura. Não é certo se aquele inquietante corpo metálico terá sido descoberto exactamente naquele lugar ou se terá viajado até ali.

No interior da cápsula de ferro, as ossadas — que desconhecemos se terão pertencido a humanos ou a animais — quebram a estranheza do cenário e geram uma afinidade imediata, vinculam-nos à história que ali se conta. Dizem-nos que, originário do futuro ou do passado, aquele estranho objecto pertence a um mundo onde os seres são compostos pelo mesma estrutura que nos dá forma. Ao mesmo tempo, abrem uma hipótese de identificação, representam a identidade do ser-vivo, passível de ser recolhida e examinada, que se associa à descoberta do ADN. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), um osso é o mote daquela que é considerada a maior elipse temporal da história do cinema.

O núcleo da Terra é composto sobretudo por ferro. E os ossos são a estrutura interna que providencia a sustentação a todos os vertebrados. São fragmentos de interioridade, associados ao que deve permanecer invisível, oculto pelas camadas exteriores — a pele, o solo. Astray (Prologue) rompe com essa opacidade simbólica dos corpos, ao abrir um rasgão no espaço que, por sua vez, nos apresenta um objecto que revela o seu interior.

Os fósseis guardam em si uma mensagem preservada pelo tempo, a ser lida num futuro incógnito e por um destinatário desconhecido. É a terra a cuidar da sua memória, a revelar a sua história e a recordar os que nela habitaram. Ao mesmo tempo, os objectos fossilizados materializam a negação do tempo como sucessão de instantes, ao gerar um ponto de convergência de momentos cosmologicamente distantes, um encontro de distâncias irredutíveis.

Georges Cuvier acreditava que a maioria dos fósseis animais por si examinados teria pertencido a espécies extintas. Em 1796, o naturalista e precursor do catastrofismo, escreveu: “Todos estes factos, consistentes entre si e não opostos a nenhum relatório, parecem provar a existência de um mundo anterior ao nosso, destruído por algum tipo de catástrofe.” O catastrofismo defende que a actual configuração geológica e biológica da Terra resulta da acção de sucessivos fenómenos catastróficos. Segundo esta teoria, para compreender o planeta, seria necessário examinar as suas extinções prévias, fazer uma genealogia da aniquilação da qual resultaria o actual mundo animal, mineral e vegetal.

Num momento em que uma parte da comunidade científica acredita estar já em curso a extinção em massa do Holoceno, causada pela espécie humana, os temas da destruição e do fim do mundo estão no centro das efabulações acerca do destino do planeta. Neste contexto, a imagem do sarcófago — a “pedra que come a carne” — ou da vala comum, construída para o efeito, podia surgir como uma advertência, vinda do futuro, tal como as vanitas da pintura flamenga do século XVII, nas quais abundavam os motivos mórbidos, como as caveiras, e que seriam uma alusão moralista à insignificância e efemeridade da vida terrena e à inevitabilidade da morte da carne.

Partindo da estrutura formal da ficção científica, por um lado, e, por outro, da metodologia da arqueologia ou da paleontologia, em que a descoberta, por vezes inesperada, de vestígios dá início a uma exploração, a um levantamento de hipóteses, em Astray (Prologue), Caroline Mesquita compõe o plano final da história que se propõe contar, cria o vestígio para a partir dele engrenar a viagem que o coloca na rota que nos intersecta. A ideia de uma temporalidade sucessiva e unidirecional soa-nos aqui a equívoco. Afinal, a viagem no tempo é um tema dominante na ficção científica, desorienta-nos para melhor nos situar. No seu controverso Après la Finitude (2006), Quentin Meillassoux afirma que a “virtude do transcendental não está em tornar o realismo ilusório mas sim em torná-lo surpreendente, i.e., aparentemente impensável, mas verdadeiro e, como tal, eminentemente problemático.” É esta implausibilidade da arte que nos permite ver para lá da superfície opaca das coisas — ficcionar a realidade até que se torne um pouco verdadeira, real até aos ossos.

Caroline Mesquita

Kunsthalle Lissabon

Maria Beatriz Marquilhas. Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.

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Carolina Mesquita. Astray (Prologue). Vistas da exposição Kunsthalle Lissabon. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e Kunsthalle Lissabon.

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