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Francisca Carvalho: Loom

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David Silva Revés

Parece-me pertinente — e justo — começar exactamente pela forma como a exposição Loom de Francisca Carvalho é apresentada na sua divulgação. Um dito de Michaux é convocado pela artista como rastilho para um enquadramento à especificidade da exposição, mas também, diria, como abertura ontológica ao seu próprio trabalho enquanto prática de revelação de novas proposições em resposta a um contexto (mental, cultural, geográfico, material): “para se criar um ser é preciso criar-se uma situação”. A situação criou-se. (coloque-se no plural — como se quer com qualquer obra de arte, como se deseja em qualquer experiência expositiva). 

Uma situação que é primeiramente criada como fruto da residência artística No Entulho, um projecto da Artworks, empresa que associa, desde há um ano, à sua actividade de desenvolvimento e fabrico de obras de arte em metal ou vidro, um programa de apoio a jovens artistas oferecendo-lhes condições únicas e distintas da prática de atelier convencional. Propondo uma oportunidade de trabalhar em contexto fabril e dispor da escala, materiais e equipas técnicas a operar nas suas instalações, a Artworks abre o leque de possibilidades práticas que convergem em potências de trabalho e desafios às poéticas individuais de cada artista convidado. 

O ser desta exposição é pois um ser que nasce de um trabalho de equipa, que faz uso das elevadas dimensões dos vidros produzidos naquele local, das características do próprio edifício e das soluções dispositivas que este permite, dando a ver, a estar, a ser (prefiro) por entre — e com — diversos painéis de vidro interrompidos por manchas de tinta, ora suportados por estruturas de ferro, ora em suspensão, ora apoiados por um aparentemente complexo jogo de forças entre barras de ferro e fitas que desarranjam a percepção e permitem um sobressalto de espectativas hápticas.  

Mas o interesse de Loom, cuja duração correspondeu ao tempo da sua inauguração e apresentação pública, não se esgota nesta situação de aproximação a materiais e soluções técnicas que fogem ao alcance mais normalizado da prática de Francisca Carvalho, embora não seja esta a primeira fez que a artista trabalha em contexto fabril. O interesse, parece-me, está sim numa meditação muito mais complexa e intelectiva a partir, mas sobretudo com, esses mesmos materiais e a sua manipulação, pela forma como as suas condições — a disposição do material, diria — são absorvidas pela artista que pensa não os materiais a partir do seu trabalho, mas sim o seu trabalho a partir dos materiais, empreendendo flexões ligeiras ou mais acentuadas num esforço de abrir novos nexos, novas ligações e continuidades, mesmo que por contraste ou oposição.  Fá-lo, por exemplo, no desvio do desenho mais intuitivo e orgânico, livre de formalismos estanques e veloz na resposta ao seu suporte e ao pensamento-mão que podemos encontrar em muitos dos seus trabalhos anteriores, para construir agora composições mais estabilizadas com recurso a formas geométricas e elementos simples vindo dos desenhos Tantra indianos e do construtivismo russo, que a artista utiliza como referências directas. 

Francisca Carvalho instaura assim novas situações, fissurando o real (num sentido hideggeriano, que em tanto se aproxima do pensamento de Michaux e da sua própria investigação artística no campo do desenho e da escrita) para dele retirar novos seres, não na procura de uma origem mas num estado de posição intersticial, que se conforta em existir nesse límbico meio.

São estes seres que vivem num entre, e que naquele espaço levitam pintados nos vidros dispostos, que se imiscuem (imagino) tanto no ser da artista que os criou como nos seres (senti, e também imagino) daqueles que olham. Porque olhar é entrar em relação, activando aquilo que do Outro desliza até o Eu e o toca deixando a sua indelével – espera-se - marca. A marca de uma relação. 

Assim, o ser que esta exposição é constrói-se principalmente no seu ser-situação, no seu ser-situações-relacionais — sensoriais, epistemológicas, metafísicas —, permitindo-as e renovando-as sucessivamente através das camadas que tão visivelmente esconde pondo à vista. 

É curioso perceber que aqueles vidros que noutra vida, que não aaquela interrompida pela artista, seriam janelas, trazem ainda dessa reminiscência a sua utilidade arquitectónica como barreira delimitadora e organizativa do espaço, sublinhada pelas formas construtivistas que revelando das máximas do movimento russo apelam a essa mesma construção organizada. Da vida social naquele caso, do espaço pictórico neste. Num movimento que ainda pressinto contínuo entre os ritmos do construtivismo pautados pelos ideais da máquina e os ritmos da fábrica na qual Francisca Carvalho trabalhou.  É a própria que o diz na entrevista a Ana Santos que acompanha a exposição: “a escala da fábrica implica um manuseamento que é já da relação entre a mão humana e a máquina, as máquinas são avessas ao próprio improviso por isso a lógica tem de mudar. Tem que se pensar à partida o que se vai fazer, tem que se programar e projectar.”. Novamente: o desvio é incorporado, o trabalho pensa-se dentro da situação.  

Mas estes vidros, sendo o suporte para a pintura, denunciam ainda uma forma de tautologia conceptual em relação à ideia albertiana de pintura como janela para a realidade. No entanto, onde na concepção de Alberti a pintura constituiria um campo de construção articulada da realidade visível, nas suas pinturas sobre vidro Francisca Carvalho procura soltar o véu do invisível e tentar entrar numa deriva pela interioridade do espírito. As formas Tantra que nesses desenhos são resultado de uma prática meditativa profunda de autoconhecimento e despertar da consciência de mundo trazem a sua elementaridade expressiva que também pode ser aqui entendida como forma de meditação sobre os materiais utilizados — especificamente o vidro — e sobre a própria prática de desenho da artista. Uma meditação sobre a sua situação num contínuo que vai criando momentos individuais, os seus seres em acumulação. 

Perante o trabalho de Francisca Carvalho, de todas as suas ligações, pela artista feita e pelas que faço, lembro-me de um breve poema de Adília Lopes que me parece tão bem descrever este trabalho, esta exposição, e que poderia mesmo ser premissa a toda a actividade artística: “Escrever um poema / escavar uma toca.”. A artista escava-as no meio da transparência — do vidro. Permiti-me entrar pelas que descobri e as que também escavei. Que outros o tenham feito, e possam fazer, por outras. 

Artworks

David Revés (Lisboa, 1992). Investigador e curador independente. Mestre em Estudos Artísticos, vertente Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2018). Tem explorado a área dos novos media e redes sociais, interessando-se pelos seus cruzamentos com a arte, museologia, sistemas expositivos e pelas questões ligadas à figura do espectador. Desenvolve uma prática crítica e ensaística com a qual contribui regularmente para algumas publicações, projectos de âmbito artístico ou académico. É, juntamente com Catarina Real, programador e moderador do ciclo de conversas “Em montagem”, que tem lugar na Appleton – Associação Cultural, em Lisboa. 

 

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Francisca Carvalho. Loom. Vistas da exposição nas Residências artísticas No Entulho. Artworks. Imagens cortesia da artista e Artworks.

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