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Entrevista a João Louro

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Isabel Nogueira

João Louro tem patente uma exposição na Galeria Vera Cortês, intitulada A Mosca de Lindbergh, um trabalho que toma como ponto de partida o voo transatlântico solitário de Lindbergh, de Nova Iorque a Paris, tendo por única companhia uma mosca, cujo incomodativo zoar devia ajudá-lo a manter-se desperto na longa viagem. Nos últimos tempos, Louro inaugurou também um project room no Museu de Arte Arquitectura e Tecnologia/MAAT — Linguistic Ground Zero —, no qual se destaca uma reprodução de Little Boy, a primeira bomba atómica da história, lançada em 1945 sobre Hiroxima. O pormenor que torna a peça ainda mais inquietante prende-se com a alusão às inscrições que os soldados faziam nas bombas. Agora, nesta obra, as inscrições referem-se à arte, à política, às vanguardas, elas próprias advindas etimologicamente de avant-garde, termo militar de origem medieval. E tudo faz sentido. As questões da palavra, da imagem, ou as referências histórias e cinematográficas estão, uma vez mais, a pontuar o trabalho de João Louro.

Isabel Nogueira (IN): O que representam, para ti, estas últimas exposições: A Mosca de Lindbergh e a também ainda patente Linguistic Ground Zero?

João Louro (JL): São dois temas diferentes mas que, de alguma forma, se ramificam e se juntam num troco principal. A primeira, no MAAT, surgiu a propósito da questão da linguagem, que é um assunto que ando a perseguir há muito tempo e que não está terminado, sendo sempre revisitado. Para o efeito, estabeleci uma série de trabalhos, escrevi um manifesto com 100 aforismos e continuo a desenvolver a tese de que dentro da letra há poder atómico. Continuo nessa investigação. Temos vestígios de que isso acontece, sobretudo quando lemos grandes escritores. Nós sabemos que a palavra tem um poder muito forte, portanto, imagino que dentro da própria letra existe um poder incomensurável. Essa é a investigação que está associada à exposição do MAAT, que vem de trás, isto é, o tema da linguagem.

A segunda exposição — A Mosca de Lindbergh — tem que ver com outra tese que se relaciona com a questão da forma. Acho que a forma é a última instância do conteúdo. Creio que a exploração da forma tem que ser tratada de um modo mais elaborado. A forma — o design — basicamente nasce a partir do século XIX, sobretudo depois da Revolução Industrial e das suas consequências. Um longo historial de acidentes com as máquinas, nomeadamente com as máquinas de tecelagem, fez perceber que estas tinham que ser protegidas e, ao serem protegidas, desenvolveu-se uma espécie de capa do mecanismo que assinalou o nascimento do design. Esta capa é a última instância do conteúdo. É isso que tento desenvolver nesta exposição, a partir do avião que Lindbergh pilota. A forma do avião é a consequência de uma séria de questões de conteúdo e serve-me de pretexto para reflectir sobre a problemática da forma e do conteúdo.

IN: Continuando nesta questão da forma, remetendo para a tua formação em arquitectura e evocando também Adolf Loos, nomeadamente a obra Ornamento e crime, o teu trabalho é profundamente depurado e parece haver uma procura de um mínimo de ruído.

JL: Sou filho da arte minimal e da arte conceptual, e a minha formação está muito marcada por elas. Todo o artista tem as suas referências. Comecei a ser artista profissional nos anos 90 e os ensinamentos que recebi e que se estabeleceram como referências foram os das escolas mais depuradas da arte. Sim, há uma fuga ao excesso, ao expressionismo, à metafísica, e ao ruído, de facto. Pretendi sempre escapar dessa consequência dos anos 50 americanos, fruto, como sabes, das imigrações do período da II Guerra Mundial [expressionismo abstracto ou “Escola de Nova Iorque”]. Willem de Kooning, por exemplo, interessava-me menos do que a altura que se seguiu, na qual o mundo da arte levou uma “vassourada” e começou a ser limpo, depurado. Isso marcou-me muito. A escola de arquitectura é uma escola que considero muito particular, porque há um saber multifacetado. Aprende-se a desenhar, a fotografar, a pensar.

IN: Aprende-se escala.

JL: Sim, aprende-se escala, aprende-se cor. São ensinamentos importantes que possuem uma vertente conceptual e também uma vertente prática. Há na arquitectura uma actividade de limpeza e de estratificação.

IN: Quando percebeste que querias ser uma artista plástico e não um arquitecto?

JL: Era inevitável. Nunca quis bombeiro, astronauta ou polícia. A coisa — e ainda hoje — que eu mais anseio e desejo é a liberdade. A liberdade é a coisa mais importante e eu não conhecia um universo mais livre do que o da arte. Era, portanto, inevitável que fosse cair lá. Havia uns antecedentes. A minha Avó, que era professora, era pintora de fim-de-semana. Eu era criança e olhava para o que ela fazia. A minha Tia também desenhava muito bem. Havia ali qualquer coisa que me fazia viajar. A arte tem uma característica que a diferencia de todas as actividades humanas. A arte tem o cliente — se o tiver —depois e não antes. Um médico, um engenheiro, um arquitecto têm um cliente antes.

IN: Mas na arte, por exemplo, no Renascimento e da Época Moderna em geral havia os grandes encomendantes.

JL: Sim, os Médici, entre outros. Os grandes patronos eram os sponsors da actividade do artista, mas não delimitavam completamente o seu trabalho e o que ele queria fazer. Por exemplo, um tema em particular podia ser tratado à maneira do artista. 

IN: Por curiosidade, chegaste a trabalhar em arquitectura?

JL: Trabalhei com alguns gabinetes de arquitectura, mas sabia que não queria ficar preso a um estirador. A minha vida estava dedicada ao universo da arte desde pequeno. Quando era miúdo, achava muita piada ao universo dos surrealistas por causa da fantasia e da loucura. Sofro um bocado de anacronismo. Depois, mais tarde, quando era adolescente comecei a perceber que o que me interessava mesmo eram as vanguardas, que são o nascimento das coisas. Interessava-me muito o dadaísmo, depois a vanguarda russa.

IN: Por acaso acho que a vanguarda russa tem aspectos próximos do teu trabalho.

JL: Sim, mas a vanguarda russa é mais restritiva e mais contida, enquanto o dadaísmo procura contrariar o ritmo do seu tempo.

IN: Referia-me à vanguarda russa em termos plásticos. A plasticidade de Rodchenko ou de Malevitch.

JL: Sim, plásticos sim. Do ponto de vista da atitude, os dadaístas interessam-me, sobretudo, porque o tempo desse momento provocou o aparecimento do próprio dadaísmo. Provavelmente não teria acontecido se não existisse a I Guerra Mundial. Este aparecimento de um movimento que contraria o ritmo burguês, a tecnologia, a loucura expansionista...

IN: Que contraria os nacionalismos.

JL: Exacto. Que contraria tudo o que representava o tempo presente. O dadaísmo é uma consequência do tempo e isso liga-se a algo importante, que é o facto de a grande característica do artista é saber ser do seu tempo. O artista do seu tempo tem que estar dentro da conversa do seu tempo.

 

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IN: Dividiria sobretudo o teu trabalho em linguagem e em imagem, embora estejam as duas naturalmente conectadas. Além de Walter Benjamin ou de Wittgenstein tens outras referências importantes?

JL: Sim, por exemplo, Aby Warburg. Há figuras do início do século [XX] que são absolutamente fundamentais, sobretudo, porque o princípio do século foi o momento crucial para percebermos as nossas raízes. Não desejo ir para trás, para o impressionismo. Os antepassados do que falo nascem nas vanguardas. E todas estas personagens que povoam esta época fazem com que haja uma inclusão de determinadas expressões. Se não percebermos a vanguarda teremos dificuldade em perceber a contemporaneidade.  

IN: Em relação especificamente à imagem, há uma reflexão, até irónica, sobre a própria imagem. É o caso da tuas blind images.

JL: Sim, mas não lhe chamaria ironia. É mais uma decepção. Comecei a fazer as blind images por causa de uma decepção. Já têm alguns anos e hoje a decepção seria ainda pior, pois aconteceu pelo excesso de imagens. Temos imagens a mais. Com os telemóveis todas as pessoas fotografam e registam tudo. Há uma entropia provocada pela própria imagem. Já não conseguimos ler as imagens pelo excesso, e eu quando senti isso comecei a apagar as imagens, a tapá-las, a fazer monocromos, a pôr uma legenda. Como o cérebro tem horror ao vazio vai ter que encontrar qualquer coisa para colocar lá, e descobri que esse era um caminho que podia percorrer. Apesar da minha decepção com as imagens continuo a guardar imagens, a arquivar imagens. As blind images são um tema revisitável. Se eu encontrar uma imagem que me faça sentido produzo uma blind image a partir dela. Há uma tentativa de cartografar o universo visual através das blind images, sem mostrar as imagens.

IN: Tens ainda a ligação a histórias, por exemplo, retiradas de recortes de jornais.

JL: Exacto. Aliás, as primeiras blind images começaram assim. São folhas rasgadas em que as áreas das imagens são tapadas com tinta. O que sobressai são os textos. Foi aí que percebi essa relação poderosa e o modo como o cérebro funciona. Creio que uma lacuna no ensino é o facto de todos aprendermos a escrever mas não a ver. Achamos que ver é um acto automático, e não é.

IN: Referes-te à necessidade de cultura visual e teoria da imagem, que são disciplinas relativamente recentes?

JL: Sim, acho que devia começar no mesmo momento em que se aprende a escrever. Devia ser mais prematuro. Ver não é inato, contrariamente ao que parece. Tem que se aprender a ver. Tens adultos que sofrem de iliteracia visual. Não conseguem descodificar, relacionar o que estão a ver. E, por causa da sobreposição de imagens — todos os dias surgem milhões de imagens —, é cada vez pior. Cria-se um universo absolutamente opaco pelo excesso.

IN: Qual foi o ponto ou projecto mais importante da tua carreira até agora? Foi a tua presença na Bienal de Veneza, em 2015?

JL: A presença na Bienal, do ponto de vista formal, é entrar na “Fórmula 1”. Toda a gente quer entrar na “Fórmula 1”. Todos acham que têm capacidade, mas só alguns é que entram. Chegar lá é um desafio muito grande, por todos os motivos. Exige resiliência, sofrimento, capacidade de superação e de gestão, equilíbrio emocional. É algo que te põe à prova em muitos campos. É necessário ter uma equipa e jogar com muitas variantes. É um projecto muito difícil, provavelmente o mais difícil, mas não foi o projecto que mais gostei de fazer. O artista não deve trabalhar sobre pressão — apesar de, por vezes, a pressão ajudar a desbloquear coisas —, deve ter uma almofada de liberdade, e a Bienal de Veneza não permite essa almofada de liberdade. No fundo, acabas por ser artista e gestor, ter de equilibrar uma hipersensibilidade com um fechamento. O artista não pode ser demasiado fechado mas também não pode ser hipersensível, sob o risco de sucumbir. De um modo, fecha-se ao universo da arte; do outro, morre como artista. Tem que saber manter esse equilíbrio. É um dilema difícil, sobretudo quando há muitas pressões, muitos elementos que têm de ser geridos. Não há dúvida de que é um teste, que está no limite. A questão é manter esse equilíbrio entre o fechar e o abrir.  

IN: Acompanho o teu percurso há bastante tempo e, após esta importante experiência institucional, mais pesada, digamos, que foi a Bienal de Veneza, participaste na mais recente edição do Festival Iminente, em 2018, que teve lugar no Panorâmico de Monsanto. Queres falar um pouco desta experiência?

JL: Pois foi! Gostei muito. Tenho uma excelente relação com o Alexandre Farto [Vhils] e eles fazem aquilo muito bem feito. O saber está instituído, é bem organizado, não há lixo, por exemplo. De facto, há ali um saber fazer. É bem pensado, é impecável. Por outro lado, conseguem juntar este saber urbano — que inicialmente até tinha mais que ver com a música — às artes performativas, às artes visuais. É abrangente e podemos chamar-lhe, eu diria, arte popular, arte pop. É um universo em que as coisas não estão tão codificadas. O excesso de codificação no universo da arte contemporânea pode ser um problema. Tento não fazer isso no meu trabalho, porque esse excesso de codificação faz com que só poucos, os entendidos, consigam ter a chave para lá entrar. Tento evitar essa encriptação, apesar de poder eventualmente falhar nisso. Mas vou, de facto, mais por esse caminho da não encriptação. Por exemplo, estou a imaginar a obra do Joseph Beuys. Se as pessoas não souberem que o avião que ele pilotava durante a II Guerra Mundial foi abatido, e que foi tratado por um tribo, com uma série de procedimentos, como a gordura, as peles, não percebem a sua obra. Ele pega nisso e constrói um vocabulário artístico. Se não souberes isto, vês uma cadeira cheia de banha e não percebes.

IN: Ou de feltro.

JL: Pois, ou um piano coberto de feltro. Se não souberes determinadas informações não consegues descodificar, ou, pelo menos, tens mais dificuldade em entrar nesse trabalho. Procuro evitar esse excesso de encriptação. Por exemplo, as minhas placas de auto-estrada toda a gente identifica, sabe o que são. Não é preciso contar uma história antes para as pessoas entrarem na obra. No fundo, o universo destes festivais de arte explora uma arte bastante mais popular, que limpa esta questão da encriptação e chega a mais pessoas. Sinceramente, vejo isso como um mérito. Adorei a experiência.  

IN: Há também na tua obra um forte universo cinematográfico.

JL: Sim, tenho muitas referências cinematográficas e é um universo que revisito. Há um filme de que gosto muito, cujo protagonista é o Paul Newman, que é The Hustler [dir. Robert Rossen, 1961]. Trata a história do melhor jogador de snooker, que entra em duelo com outro grande jogador, e há uma disputa incrível. Têm personalidades muito diferentes e o jogo decorre durante uma noite. Um jogador é muito talentoso mas desregrado e sem método; o outro, apesar de menos talentoso, é metódico e resiliente. No final, quase de madrugada, este vai à casa de banho, lava a cara, perfuma-se e volta para o jogo. E ganha tudo.

IN: E a tua relação com a música, que é também próxima, queres falar um pouco desse aspecto?

JL: Sou melómano, sim, a música é uma presença. Aliás, fiz recentemente uma exposição na Galiza, com uma nova frente que abri, na qual aparecem as blind music, que são obras que falam de peças de música particulares, que foram compiladas para esta exposição, mas onde não há música. Comecei com uma peça do Prokofiev. Estaline convidou-o para escrever uma obra musical pela ocasião do seu aniversário. Seria difícil dizer que não a Estaline. O compositor fez a obra, mas ficou tão contrariado e desgostoso que, de seguida, fez outra peça musical para criticar a primeira, que era uma marcha militar.

IN: É a antítese da tese.

JL: Exacto.

IN: Para terminar, és um homem feliz, João?

JL: Sou muito feliz, porque faço o que gosto!

IN: Obrigada.

 

João Louro

 

Galeria Vera Cortês

 

Maat: Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia

 

Isabel Nogueira (n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

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1ª imagem e último bloco de imagens: João Louro. A Mosca de Lindbergh. Vistas da exposição Galeria Vera Cortês. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Vera Cortês.

2ª Imagem: Vistas da exposição Linguistic Ground Zero​. MAAT - Museu de Arte Arquitectura e Tecnologia. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e MAAT - Museu de Arte Arquitectura e Tecnologia / Fundação EDP.

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