1 / 14

Alexandre Estrela e Daragh Reeves: 20 anos de conversas 

Toucan Watch-30.jpg
Antonia Gaeta

Uma conversa a três sobre a cumplicidade que une os universos artísticos de Alexandre Estrela e Daragh Reeves há mais de 20 anos. 

Antonia Gaeta (AG)Partimos do título Toucan Watch. A sua polissemia permite que funcione como um receptor de ideias e de obras. É semelhante a um código genético — cumpre a sua função e acaba por estruturar toda a exposição. Ao mesmo tempo potencia coincidências formais entre os trabalhos. O que acham?

Alexandre Estrela (AE): Tanto no meu trabalho, como no do Daragh a linguagem e a língua, o seu domínio ou falta dele, têm um papel central. Para mim pode ser uma forma de começar ou acabar uma peça, um derradeiro corte umbilical ou a sopa primordial, um ADN que pode mesmo prescindir de outra forma que não seja a escrita. Esta exposição foi como fazer uma peça. Sabíamos que era necessário estarmos sintonizados na mesma frequência, sem esforço. Apesar da nossa comunicação não ser frequente, desde que nos conhecemos que sabemos que existe um sincronismo mantido à distância e que quando fazemos uma peça o outro já a fez ou vai fazer melhor. Como a Ana Baliza descreve no press release da exposição: vivemos num estado de entrelaçamento quântico propício às coincidências, mas não sabíamos qual o efeito se a distância entre nós fosse encurtada.

Quando convidei o Daragh a expor comigo na Madragoa já vinha com um título em mente — Twin Brothers of Different Mothers. Era um título operacional que espelhava a nossa relação e que citava uma publicação que editei há uns anos em que punha lado a lado obras iguais de artistas diferentes feitas com um intervalo de dois anos. Esta publicação punha lado a lado coincidências (e alguma falta de ética) nos trabalhos de Michael Snow/William Anastasi, Sol Lewitt/François Morellet, Frank Stella/Lygia Pape… eu queria inscrever-nos a ambos nesta lista.

Mas à medida que a exposição se foi concretizando este título foi-se diluindo nas relações entre peças. No final, totalmente exaustos de insatisfação com o título encontrámos, por acaso, uma frase na intersecção de duas peças: um desenho do Daragh dos tempos da School of Visual Arts, em que se vê uma listagem de coisas, entre elas um relógio com um tucano que ele tenta vender como uma pintura; e um vídeo meu, onde se vê um homem a rodar um pau com vários pássaros tropicais, entre os quais um tucano, agarrados em equilíbrio. A curta duração do loop e o movimento circular sincopado transformam o pau num ponteiro e a peça num dispositivo temporal.

Tucan Watch foi uma lufada de ar fresco e se calhar o título é a verdadeira e única colaboração na exposição, o resto é um discurso síncrono, em paralelo, que revela fortes relações formais e conceptuais nos nossos corpos de trabalho, desde um gosto mútuo pela encapsulação do tempo (Tucan Watch), ao trabalho perceptivo (Two Can Watch), e a convocação de um público Português e Inglês (Tu Can Watch) .

Daragh Reeves (DR): I can say Estrela and I both like titles. After some struggles this one seemed to fit. Who knows what fitting really means; probably something that has to do our shared interest in time, film and wildlife?

It was lifted from a drawing in the show — I noticed we might share this tendency to find and use things that simply exist and put them in the limelight. I am thinking here of The Waiter, a work I like a lot in the show, by Alexandre, with the humble small face of a blue man present in the interior form of a video cassette box. He waits for his master, the cassette, to return home.

AG: O meu entendimento sobre a exposição é que ela funciona como um guião, pautada pelos títulos que criam expectativa e pressagiam algo em suspenso (que ainda está para vir ou para acontecer, e que pode aparecer a qualquer momento).

AE: O Daragh tem vários projectos com guiões detalhados e ultra minuciosos, alguns ambiciosos que nunca se transformaram em filmes por falta de financiamento (um deles é um projecto que gostava de um dia publicar no Oporto, é uma espécie de  relógio em vídeo feito a partir de cenas de relógios retiradas de filmes comerciais, este guião obsessivo andou durante anos de produtora em produtora até ser scooped pelo Christian Marclay)… Da minha parte, nunca tive interesse em realizar um filme, talvez esta exposição seja um ponto de viragem. Tambem gosto de ver a exposição como uma narrativa sequencial entrecortada por MacGuffins … Mas antes de um filme, seria talvez um livro. Seria curioso desvendarmos os links e convocarmos as nossas referências, cinismo (cada vez menor) e quem sabe humor.

DR: I like the idea that this configuration could live on physically in the same way films live on as fixed compositions in time. If all history’s art shows became permanent I wonder if there would be any place left to sleep? The world would be like an over tattooed body gone black.

Your reaction speaks perhaps of the connections we made that lead one through the show like a film’s protagonist in search of meaning and answers which of course may never come. What meaning we deliver is not clear to me — but I recognise in the show evidence of a desire to perform — in our case separately, but also together. 

It was a process of trying on old outfits from a costume box, to see what would still fit, what we might remember and what new stories could be told in the moment. A Cassavettesesque process of rehearsal, improvisation and then trying to sculpt some story out of a mass of footage.

At times, while making the show I felt that Estrela and I were like two directors who have used the same sets, actors and props at the same time without knowing it. Or perhaps instead it was the same scripts but with different visuals. This weird and easy process was like cutting together two parallel movies, that happened to be our oeuvres. 

AG: Em Toucan Watch aparecem trabalhos em conjunto, trabalhos antigos, reframings de outros, novos entendimentos, uma aproximação diarística, jogos de palavras. Todo o processo de concretização da exposição assemelha-se ao jogo da roleta russa. Será?

AE: O jogo da roleta russa jogámo-lo há 20 anos quando nos conhecemos na School of Visual Arts em Nova Iorque. Eu estava num ano à frente, ansioso por conhecer colegas que partilhassem a mesma linguagem. Quando conheci o Daragh ele tinha um atelier distinto do resto dos alunos, na sua maioria pintores, pois era alcatifado com ar de escritório. Este escritório não era só o seu atelier, era a sala de comando de operações plásticas, onde orquestrava e produzia vídeos e performances com os seus colegas, como também era a sua casa. Contrariando as regras da instituição, viveu ali durante uns meses da forma mais digna. Uma noite combinámos trazer os nossos livros de ideias. Foram três ou quatro horas de intensa troca de ideias, e a meio resolvemos jogar uma versão da roleta russa, cuja única regra era escolher do outro uma peça para que nunca fosse realizada. Ele escolheu muito bem e penso que estive à altura pois ambos faltámos ao nosso compromisso e penso que até hoje não voltámos a falar neste momento bastante desconfortável.

Nos anos seguintes, convidei-o a participar num festival de vídeo que organizei, o Hi8, uma selecção de 8 vídeos com menos de um minuto, pedi-lhe trabalhos para uma revista de desenho, a Manual que juntava desenhos de artistas conceptuais com tatuadores amigos e amadores e, em 2007, convidei-o para a primeira apresentação no Oporto, após ter visto uma exposição sua que me marcou, no W139 em Amsterdão. No Oporto o Daragh não só contribuiu com a distribuição das cadeiras, um desenho que ainda seguimos, como apresentou um diário videográfico dos seus tempos em Nova Iorque. The Fountains of New York, mistura pranks, animações, esculturas, desenhos e vídeos caseiros com excertos de filmes e performances realizadas na escola. Um jorro com uma intensidade e desprendimento que invejo e que encontrei pela primeira vez no seu cubículo da SVA.

Na galeria Madragoa retomámos o jogo e em vez de entrarmos na perversão de nos amputarmos um ao outro resolvemos comissariarmo-nos, relembrado peças invocado ideias, potenciando um curso de coincidências latente nos nossos trabalhos que têm formas completamente distintas. 

DR I can’t personally relate to the danger levels you allude to with this risky metaphor but it fills my mind with images of The Deer Hunter. I see the Frenchman who seems to be the promoter of the deadly events in the film, he wears a white suit and occupies a moral universe only possible far from home. And this reminds me of Alexandre in New York — I remember listening to his ideas many years ago as students, he was creating parallel universes in which he was a kind of god — shrunken heads, underwater homes in which men would turn into fish, all with a wild glint in his eye. Coincidentally during this time I was doing many Robert DeNiro impressions.

... But to try to answer you — Any show is a calculated risk — you have to be in the so called ‘zone’ to even dare it and hope to get away with it. In the case of Toucan Watch, Estrela is one artist I always trust to bring some good luck when he spins the barrel.

Toucan Watch-18
Toucan Watch-25
Toucan Watch-26
Toucan Watch-15
Toucan Watch-17
Toucan Watch-16
Toucan Watch-11
Toucan Watch-27
Toucan Watch-28
Toucan Watch-29
Toucan Watch-23
Toucan Watch-24

 

AG: Também é verdade que esta exposição e a maneira como ela foi pensada só foi possível graças a vinte anos de conversas entre vocês. Como se processa e manifesta no trabalho?

AE: Sim há uma cumplicidade bastante grande. Um dos textos mais interessantes do meu catálogo de Serralves é o do Daragh. Ele conseguiu ter uma visão muito pessoal do meu trabalho sem nunca ser invasivo. Acho que o que aconteceu na Madragoa foi um diálogo franco e bastante fluído, que só se consegue ter quando se é mais velho e as "guardas" estão baixas. Quanto mais nos aproximávamos do dia da inauguração mais em sintonia estávamos. E quando inaugurámos reparámos que nos tínhamos esquecido de assinar as peças nas tabelas e na folha de sala ... deixámos assim, pois naquele ponto já não interessava delinear um território.

DR: Yes it was like a play in rehearsal for 20 years except there was no script and at no point did we discuss any plan to work together or even admit we were acting.  

In 1999 when we first began chatting — it became a source of mystery and unspoken comradery that despite our separate prowess as ‘ideas people’, we in fact had exactly the same ideas — everything I had thought of Alexandre had too. Every obscure thought that had no reason to exist other than to excite me privately, he’d had it too! And the strange thing was, it was not annoying. They are mainly ideas about film and its apparatus at its essential level — deconstructed and thought about from many angles. So actually it was more like geeking out.

By the time we made this show in 2018, we were aware that we had the freedom to be old guys, even less concerned with fashions, current topics etc and extra concerned about lunch and good socks. Despite the small scale of the gallery, I can say we treated this show with the seriousness of an outing at MOMA — I wanted to show a large range of works and avoid it feeling like a boutique — in fact next time I would like even more works and make it like a big laboratory.

AG: Alexandre, inauguraste o Oporto, em 2007, com The Fountains of New York de Daragh Reeves e em Dezembro passado voltaste a apresentar um projecto do mesmo artista, Un Borghese Piccolo Piccolo. Parece-me que o Daragh é o único reincidente na tua programação. Como articulas este projecto com o teu trabalho de artista? As tuas escolhas seguem uma linha ou um filão determinado? Em suma, o Oporto é parte do teu trabalho de artista ou consegues diferenciar as duas coisas?

AE: Houve mais dois artistas que mostraram mais do que uma vez o seu trabalho no Oporto. Um deles foi um Klaus Wyborny com quem também tive uma noite de troca de ideias e o Pat O’Neill com quem sinto uma afinidade e admiração apesar de só termos trocado uns emails. A segunda vez que foi apresentado o trabalho do Pat O’Neill foi por insistência do seu amigo e documentarista Hartmut Bitomsky que me pediu para projectar e comentar o filme Water and Power após o desinteresse da cinemateca em lhe programar uma retrospectiva.

O  acto de programar obriga-me a estar activo, ver e ler muita coisa e sobretudo a estar atento ao trabalho dos outros. No Oporto não tenho compromissos, mostro trabalho que acredito e que acho pertinente, o encadeamento das sessões revelam um filão subjectivo. Ultimamente a discussão do programa alargou-se à Ana Baliza com quem também colaboro na parte gráfica do projecto. Nas sessões tentamos dar a maior dignidade às peças, trabalhando para um público que penso ser o ideal, gostaria de um dia ter para o meu trabalho a atenção que este dedicou e dedica a todas as sessões. Sinto que é um privilégio mostrar naquele espaço carregado de história sindical e experimental, mas mostrar ali o meu próprio trabalho é um impulso que tento travar. A sessão de Un Borghese Piccolo Piccolo (2004) é uma extensão da experiência iniciada na Madragoa. Este trabalho invoca um ecrã permeável à memória, uma ideia que me é muito próxima. Apesar de não ser da minha autoria, a sua proximidade obriga-me a classificá-la de peça enteada.

Descansa-me saber que sempre que há um projecto da envergadura de Tucan Watch ou do Oporto posso contar com o Daragh Reeves, assim como ele pode contar comigo não só para projectos artísticos, como também para integrar a fileira de funcionários do seu prolífico negócio de onigiris.

 

Alexandre Estrela

Daragh Reeves

Oporto

Galeria Madragoa

Antonia Gaeta (Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha. Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.

 

Poster Borghese
P1210951
P1210956
DSC00212
P1210954

1º bloco de imagens: Tucan Watch. Vistas da exposição. Galeria Madragoa. Cortesia dos artistas e Galeria Madragoa.

2º bloco de imagens: Un Borghese Piccolo Piccolo. Vistas da exposição Oporto. Cortesia do artista e Oporto.

Voltar ao topo