Inês Zenha: Ressurreição

Ressureição, de Inês Zenha, vincula as complexidades das questões de género e de transformação às de persistência e de sobrevivência.[1] Na forma de instalação multifacetada de uma sala de banho inteiramente branca, a primeira exposição individual de Zenha em Portugal apresenta um premente enunciado filosófico. À entrada, uma cortina de chuveiro começa por ocultar a instalação principal. Constituída por um chuveiro abandonado, um conjunto de bacias com água a verter de umas para as outras, e uma plataforma coberta de azulejos ligada por tubos à parede lateral, aditando-se também um altar com uma orquídea esculpida e várias bacias a imitar as que se encontram ao início, esta instalação é complementada por esculturas de plantas que crescem por entre os ralos e azulejos daquela base.
O rumor permanente de água a correr permeia a exposição, evocando, assim, a serenidade inquietante de um santuário que não reconhecemos; e é com este som que o observador se depara ao entrar na galeria, escutando-o por detrás de Trespassing the armed gaze, que obstrui a perceção inicial do espaço. Esta peça configura uma cortina de chuveiro de grandes dimensões, constituindo-se de azulejos unidos entre si por arames. Observando-os de perto, cada azulejo revela-se uma réplica serial de um seio em cerâmica, aparentemente moldado a partir do peito de Zenha. A rigidez da estrutura da cortina, no entanto, é interrompida pela abertura que se encontra no canto superior direito, como se alguém, ao invadir um espaço que não se pretendia público, a tivesse puxado e descosido.
Assim que se ultrapassa a cortina, vê-se a peça mais marcante da exposição: A body remains in confession, representando um duche com a torneira fechada. Aqui, os azulejos-seios formam seis colunas imaculadas, com três à esquerda e outras três à direita; as duas ao meio encontram-se parcialmente desfeitas, acumulando-se os detritos na base, num pequeno monte de lama e de azulejos partidos— seios partidos. Embora a rutura da ordem possa representar metaforicamente uma instância de emancipação, o repetir desta disrupção reforça a sensação de que o observador, tornado intruso, está a entrar num espaço que foi abandonado à pressa.
Na parte de trás da parede que suporta A body remains in confession encontra-se Raise my voice, uma estrutura fontanária vertical que se prolonga para o altar, instalado na parede do fundo, através de uma plataforma azulejada. O som da água a verter de uma bacia para a outra na estrutura vertical, assumindo estas a forma de genitais, transfigura a curiosidade do observador em inquietude, como se ali ouvíssemos alguém a fazer as suas necessidades na casa-de-banho com a porta escancarada. Esta primeira metade da instalação é complementada por ervas daninhas que florescem e prosperam por entre os azulejos e os ralos da plataforma vertical. A perseverança que aqui testemunhamos remete para a questão original do feminismo, a questão da sobrevivência,[2] e associa-se diretamente à definição secular da palavra "ressurreição": um novo começo para algo que desapareceu, envelheceu ou se tornou indesejável. Também se relaciona com a ideia de renascimento e com a terminologia associada no discurso trans que se refere à transição a partir do género atribuído à nascença; o nome, e por aí adiante, é deixado para trás e substituído pela nova vida do novo eu.
A criação de um espaço metafísico permanente de ressurreição e autorreinvenção evidencia a capacidade de Zenha de conjugar a investigação adquirida e a experiência vivida no sentido da formulação de uma linguagem visual competente. Perspetivada a partir do discurso seminal de Judith Butler em torno dos estudos de género, Ressurreição insiste no desejo de uma ressurreição contínua que, ao mesmo tempo, abre e fecha a porta a qualquer testemunho da transformação implicada. O estado fraturado dos azulejos de A body remains in confession e o vazio do espaço, amplificado pela tonalidade que o envolve, sugerem que ali entramos depois de algo transformativo ter acontecido. A ressurreição já ocorreu, e nós, enquanto público, tornamo-nos unos com uma sociedade que invade constantemente o espaço pessoal de autorreinvenção de cada um. A armadura que constituirá a cortina de chuveiro à entrada da exposição mostra-se aparentemente insuficiente para impedir esta invasão, ao passo que o espaço, tendo já sido abandonado, impossibilita qualquer influência que aquela pudesse vir a ter sobre a própria ressurreição.
É neste paradoxo de sermos vistes ou não vistes, de nos definirmos ou de sermos levades pela sociedade a definirmo-nos, que Ressurreição encontra o seu próprio espaço queer. Segundo Butler, este paradoxo de agência entre o eu e a sociedade "é a condição da sua própria impossibilidade. // Por conseguinte, o «eu» que eu sou constitui-se de normas, e depende delas, mas simultaneamente também procura viver de alguma forma que com elas permita manter uma relação crítica e transformativa."[3] O paradoxo surge na nossa ação de invadir um espaço de renascimento e ressurreição que é involuntária mas deliberadamente performado pelo e para o público. Ao formular este encontro, Ressurreição diferencia-se de outras exposições de pequena dimensão pela sua profundidade filosófica e pela ampla gama de emoções que suscita.
A dualidade do título dá continuidade à do paradoxo. A definição cristã, remetendo para a ressurreição de Jesus Cristo e de todas as pessoas no fim do mundo, é uma referência direta ao contexto lusitano que envolve a exposição — tal como o é a prevalência do azulejo branco, em contraste com o padrão tradicionalmente colorido do azulejo português. Remetendo para este segundo sentido da ressurreição, o altar da instalação, Purify me in your becoming-water, encontra-se deliberadamente instalado no fundo da sala. Em resistência ao catolicismo português, que para muitos continua a ser um espaço hostil e restritivo, esta peça subverte o altar cristão: em vez de uma cruz com um Cristo pré-ressurreição, vemos uma orquídea em flor; igualmente, as bacias subjacentes subvertem o ato do batismo com elementos esculpidos que, contra todas as expetativas, enformam esculturas surreais de sobrevivência.
Inês Zenha diz-me que as orquídeas são na verdade Ophrys, há muito descritas por biólogos como "estranhas", "condenáveis" e "moralmente corrompidas". Ainda hoje, as Ophrys são frequentemente designadas "orquídeas prostitutas", já que as suas flores recriam o cheiro, a aparência e a textura de abelhas fêmea.[4] Em vez de cederem néctar aos seus polinizadores, fazem uso das suas características físicas para atraírem abelhas macho e motivarem a copulação, depositando pólen sobre a cabeça da abelha durante o ato sexual. As abelhas acabam por voltar à flor uma e outra vez, mais por prazer do que por necessidade — um cenário biológico que a sentenciosa ordem patriarcal continua a julgar provocante.
Ao invés de se limitar a matérias exclusivamente queer, como a imprensa especializada poderá fazer crer, Ressurreição alarga a teoria queer para um território de questões prementes que se vinculam ao humano e ao pós-humano e se relacionam com o processo de devir.[5] É através do entendimento partilhado da contínua transformação interna que anima a performatividade, e inclusivamente através da própria performatividade, que nos é lançado o convite para nos envolvermos crítica e emocionalmente.
Nos dias que se seguiram à minha visita, ficou-me no espírito um sentido vincado de frustração por a exposição oferecer ao visitante um lugar estático, balsâmico, e não um espaço que motivasse ação política e alguma indignação. Levei algum tempo a perceber que a minha exigência de que o espaço se revelasse um agente político ativo violava este processo-espaço de renascimento, autodefinição e ressurreição — um processo-espaço sagrado, mas ainda assim repetidamente devassado e contundentemente politizado. Ressurreição, no entanto, constrói este locus abraçando os dois lados do paradoxo: estático/movente, todo/fraturado, visto/não-visto, rígido/interrompido, definido/indefinido; e mostra que só seremos capazes de destrinçar a nossa própria emancipação se abraçarmos este paradoxo da ressurreição enquanto lugar da transformação e da persistência do eu.
Maria Kruglyak é pesquisadora, crítica e escritora especializada em arte e cultura contemporânea. É editora-chefe e fundadora de Culturala, uma revista de arte e teoria cultural em rede que experimenta uma linguagem direta e accessível para a arte contemporânea. É mestre em História da Arte pela SOAS, Universidade de Londres, onde se focou na arte contemporânea do Leste e Sudeste Asiático. Completou um estágio curatorial e editorial no MAAT em 2022 e atualmente trabalha como redator freelancer de arte.
Tradução EN-PT: Diogo Montenegro.


Inês Zenha: Ressurreição. Vistas gerais da exposição na Kunsthalle Lissabon. Fotos: Bruno Lopes. Courtesia da artista e Kunsthalle Lissabon.
Notas:
[1] Referência a uma frase da introdução de Judith Butler a Undoing Gender (Routledge, 2004), p. 4: "Os ensaios presentes neste texto configuram uma tentativa de relacionar a problemática do género e da sexualidade com as tarefas da persistência e da sobrevivência."
[2] Butler, "The Question of Social Transformation", Undoing Gender, p. 205.
[3] Butler, "Introduction: Acting in Concert", Undoing Gender, p. 3.
[4] Conversa com Inês Zenha, 25 de fevereiro de 2023.
[5] São as questões relativas a "quem e o que efetivamente somos no processo de devir" que, segundo Rosi Braidotti, se relacionam diretamente com a "condição pós-humana [que] nos impele a pensar crítica e criativamente sobre" estas mesmas questões. Ver Braidotti, The Posthuman (Polity, 2013), p. 12.