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Nuno Ramos: Opening

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José Marmeleira

 

 

A partir da citação de um famoso ensaio de Robert Musil[1], o artista brasileiro Nuno Ramos escreve que o monumento e a escultura pública são objectos que tendem a passar desapercebidos. Ou tendiam, pois logo a seguir, ainda no mesmo texto — aquele que escreveu para a exposição Opening, patente na Galera Francisco Fino — lembra-nos de um facto indesmentível: ganharam, há alguns anos, uma nova visibilidade, isto é, recortaram-se, materiais, dos cenários onde haviam sido colocados. Por consequência, voltaram a ser discutidos, pinchados, atacados (e em alguns caos) derrubados. Ganharam vida, mesmo que para voltarem a morrer. Ora é desse espaço, entre a revelação e a ocultação, o aparecimento e o desaparecimento que se situam as instalações de Opening

Antes de lhes dedicarmos o presente texto, vale a pena comentar a citação do escritor austríaco, onde ressoa a frase de um seu contemporâneo, outro escritor, Franz Kafka citada por Hannah Arendt: “Os monumentos não constituíam mais do que uma herança que os mortos haviam deixado aos ninguéns. Haviam-se tornado meros produtos da sociedade e é escusado continuar a pensar neles, pois “com o tempo morrem e perdem a sua força”.[2]

Talvez para um olho panorâmico e acelerado — que é o mais comum, conceda-se — os monumentos desapareçam, anónimos, na paisagem. E, todavia, o encontro com as coisas públicas não tem de obedecer a semelhantes condições. Pode ser solitário, silencioso, fortuito numa avenida esvaziada ou num recanto de rua. E, para lá, das suas qualidades estética, formais ou visuais pode proporcionar-nos modestíssimas epifanias ou deixar-nos num estado posterior de meditação. Estas proposições são válidas tanto para a lápide que homenageia uma figura de pequena vila, como para as esculturas públicas assinadas por artistas nacionais e que decoram a zona habitacional do Parque de Nações. São obras de sentido e valor diferente — é indubitável — mas todas solicitam a quem as encontra uma relação solitária, subjectiva e humilde.

Também é assim com Opening — que poderíamos traduzir por abertura ou inauguração. Todas as instalações que a constituem, com a excepção de uma, intitulada Luzes da Cidade (já lá iremos), revelam e velam coisas por meio de pesos e contrapesos, panos de cetim e palavras que saem de colunas de som. Assinale-se, desde já, a presença das palavras na exposição. Embora ditas e não escritas, são indissociáveis das instalações apresentadas. Acrescente-se: elas começam quando os monumentos se desvelam, mesmo quando pouco nos parecem dizer. 

 

 

No caso de Opening têm um sentido que serpenteia entre a sátira e melancolia. As instalações começam por surgir tapadas, dialogando com a série de 24 imagens de uma memorável cena de Luzes da Ribalta (1931) de Charlie Chaplin. Vistas assim, debaixo dos panos, no chão, essas instalações não têm de facto nada monumental. Parecem coisas abandonadas ao tempo, esquecidas, com o seu quê de fantasmático. Entretanto, escuta-se o som mecânico e metálico do movimento que levantará o primeiro pano. Toda a possível solenidade desaparece, face ao aparato, da artificialidade proposta. Quando um dos momentos se inicia (na instalação Sopa), levantando-se o véu, a cerimónia começa. E ouvem-se vozes.

O pano revela um plinto no qual repousa um prato com sopa de lentilhas, enquanto as vozes desfilam depressa e individualmente: todas (e reconhecemos algumas) agradecem a alguém. A sucessão é ruidosa, contras as ideias de cura, de conforto e amparo repousam no objecto e na comida. Deste encontro, desprende-se uma ironia. As palavras — em fluxo — perdem-se numa tagarelice, transformam-se em som — sem significado — que só se calará quando o pano voltar a cair. Não há redenção, parece dizer-nos o artista, nem memória. Se esta pode ser uma leitura, haverá certamente outras: afinal, não corresponderão as vozes à complexidade do actual espaço público? Neste sentido, a imagem do véu depois de caído, carrega um peso melancólico, confundindo-se com uma escultura sem forma.

Mas não é com a escultura, ou no próprio dispositivo da instalação, que a exposição adquire a sua força. É a linguagem, as palavras dos discursos, que lha atribuem. Opening é uma exposição que procura repensar a nova vida dos monumentos, o seu carácter público e performativo (e, em última análise, o da própria obra de arte). Testemunhamos e contemplamos a relação entre o prato e os agradecimentos — que são acionados por um contrapeso sobre a coluna de som — enquanto ruminamos à volta das ideias de “público”, “obra de arte”, “memória”, “esquecimento”, “cerimónia” e  “monumento”.

A dada altura, levanta-se o outro véu — o da instalação Gelo — e escutam-se na sala outros sons: clarins, sinos, cornetas, buzinas, latidos, vozes. Pertencem a cerimoniais de minutos de silêncio, embora a sua duração seja a de segundos. No plinto, observamos um paralelepípedo de gelo que, cintilante, derrete devagar. Ainda na forma de água morta, parece, enfim, ganhar vida antes de evaporar, talvez em fuga das palavras que ecoam na sala.

Uma certa cacofonia instala-se, transformando-se em ruído de fundo de outra instalação, David. No lugar do plinto, encontra-se uma base vazia de mármore onde ainda se podem ver pegadas. O monumento, que ficamos a saber ser David de Michelangelo, desapareceu. Dele, ouvimos a conversa que teve com o seu entrevistador. O tom é desconsolado, mas sem recusar o humor. Ficamos a saber que David fugiu de Florença e foi encontrado a boiar no rio italiano Arno pelo homem que lhe faz perguntas. A estátua responde, divagando sobre o tempo, a fama, a cultura, a natureza, a história, a arte, o público. Foi um raio que a acordou e que lhe permitiu fugir, cansada, antes de cair no rio. Perto do fim, exprime o seu desejo: quer desaparecer do mundo, ser enterrada na terra. Pede um funeral e uma procissão. Sim, quer desaparecer, contudo na esperança de que tal desaparecimento não seja absoluto. Pressente que o regresso ao olvido do tempo não será definitivo.

As imagens retiradas de Luzes da Cidade (título de enorme ressonância) deixam suspensas estas questões. No já mencionado texto, Nuno Ramos refere que a cena de abertura do filme é uma imensa crítica à monumentalidade. E é de facto, mas, curiosamente, o artista não nos mostra o vagabundo/actor/estrela de cinema. Nas fotografias, ele continua empoleirado na escultura, escondido sob o pano, antes da inauguração. Ora, em certo sentido esse particular vagabundo — arquetípico politico de todos os párias — também acabou representado em estátuas e monumentos, reproduzido em cópias e imagens. Talvez por isso não o veremos ali. Desta vez o plano não se levantará. 

 

Nuno Ramos

Galeria Francisco Fino 

 

José Marmeleira é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação [ISCTE], é bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT] e doutorando no Programa Doutoral em Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no âmbito do qual prepara uma dissertação em torno do pensar que Hannah Arendt consagrou à arte e à cultura. Desenvolve, também, a actividade de jornalista e crítico cultural independente em várias publicações [Ípsilon, suplemento do jornal Público, Contemporânea e Ler].

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Nuno Ramos, Opening, vistas das exposição na Galeria Francisco Fino. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e  Galeria Francisco Fino.

 



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Notas:

[1] “Monuments” in R. Musil in Selected Writings, ed. by B. Pike, Continuum, London and New York 1998, p. 322.

[2] Franz Kafka, Appreciated Anew in Reflections on literature and culture (Ed. Susannah Young-Ah Gottlieb) Stanford, Stanford University Press, 2007.

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