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Maria Capelo: O Dia já Fecha as Portas

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Sara Magno

 

A recuperação da mecânica viva da paisagem

 

 

É uma alegria encontrar alguns desenhos que têm a ver com a recuperação do absolutamente irrecuperável. 

Filomena Molder, Palavras Aladas (2022)

 

 

O dia já fecha as portas é o título sob o qual Maria Capelo reúne a série de desenhos actualmente em exposição no Gabinete — um espaço expositivo criado para representar artistas portugueses que se encontra no antigo edifício da Central Eléctrica (MAAT: Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia). Esta série de desenhos feitos apenas a tinta da China sobre papel oriental baseia-se na representação obsessiva de uma paisagem, que aliás é uma obsessão recorrente em toda a obra de Maria Capelo — explica João Pinharanda, o curador da exposição, na folha de sala. Contudo, mais do que um título, que pode servir de nome ou designação ou indicar o assunto ou matéria que ali se trata, ele é a porta de entrada para os desenhos de Capelo. 

É comum encontrarmos no trabalho de Capelo, títulos inspirados em obras literárias — relembre-se, por exemplo, as exposições Os dias como claras manhãs, as noites de trevas espessas (2013), na Galeria Giefarte, e Todas as montanhas ardem (2015) na Galeria Diferença, em Lisboa, onde a artista se apropria de excertos de textos do escritor italiano Cesare Pavese. No caso da actual exposição, é uma estrofe do poema “Contra a Sedução” de Bertolt Brecht que segundo Capelo “é um aviso, uma exortação à necessidade de uma prática de incredulidade fundamental, vigorosa e permanente contra a sedução.” E acrescenta: “a frase isolada O dia já fecha as portas, mesmo sem conhecermos o poema completo, pode evocar muitas coisas, mantendo esse alerta para que estejamos sempre atentos.” Para Brecht, depois do dia acabar “não haverá amanhã” para nos redimirmos do dia de hoje.

Walter Bernjamin também se debruçou sobre este poema e, à semelhança do que Capelo diz acima, escreve que neste poema Brecht contesta a existência de uma outra vida além da morte. Na interpretação benjaminiana do poema pode ler-se: “O povo tem sido advertido pelo clero contra tentações pelas quais terá de pagar numa segunda vida após a morte. O poeta adverte-os contra as tentações e enganos pelos quais devem pagar nesta vida aqui na terra” [1]. Pode-se ainda acrescentar a esta leitura, se contextualizarmos o poema no resto da obra de Brecht, que o pior dos males não é a morte, mas sim viver uma vida de tortura ou uma vida indigna de ser vivida. 

Da mesma forma que o poema nos obriga a confrontar-nos com a brevidade da nossa vida e com aquilo a que a dedicamos, também os desenhos de Capelo nos confrontam com essa mesma ideia através do rigor e severidade de cada traço que procura recuperar um instante irrecuperável na paisagem que teima em desaparecer. No fundo, procura-se “a recuperação do absolutamente irrecuperável,” como assinala Filomena Molder em epígrafe. Molder dá como exemplo o desenho no céu que faz uma ave quando voa, e explica que assim que o vemos ele desaparece e é irrecuperável. Da mesma forma, o desenho que o vento dá ao contorno de uma árvore, também aparece e desaparece constantemente. Neste trabalho de Capelo, vemos isso precisamente: a tentativa de o recuperar e fixar os contornos da paisagem em constante mutação recorrendo não só ao real — àquilo que vemos diante dos nossos olhos, como também à lembrança do que essa paisagem foi. Numa troca de emails com a artista, ela escreve:

Todo o meu trabalho começa pela observação directa de um ponto de vista escolhido sobre uma paisagem, ou várias paisagens. Estes desenhos fazem parte de uma série que surge a partir de um sítio que existe, numa região de Portugal a que volto muitas vezes para trabalhar porque me é familiar. São paisagens que fazem parte da minha memória, e a memória é muito importante no meu trabalho. A memória pessoal e a memória colectiva. As paisagens são o resultado concreto dos movimentos da Terra e das acções dos homens, e tudo o que nelas acontece deixa os seus traços, mais ou menos evidentes.

Nota-se neste conjunto de desenhos uma extrema economia de meios, até no detalhe das formas. Abundam linhas grossas, densas e pretas, maioritariamente verticais e horizontais formando uma trama que se adensa ou não para dar sentido à obscuridade ou às transparências da paisagem. Noutras palavras, pode notar-se em cada um dos desenhos desta série uma tentativa da recuperação da “mecânica vida” da paisagem. O termo a «mecânica viva» é adaptado do texto “Méchanique Vivante” (1983) do arqueólogo André Leroi-Gourhan. Segundo uma interpretação de Filomena Molder, a mecânica viva é “indecifrável por qualquer física, matemática ou mesmo biologia. É essa vida que comporta as suas formas, as suas dinâmicas ancoradas na sua mecânica” (Molder 2022, 101). A mecânica viva, portanto só pode ser decifrável por uma disciplina que se ocupa com as opacidades e transparências das linhas que coisas, como o voo dos pássaros ou o vento nas árvores produzem: a arte e em particular o desenho. 

Isto ajuda-nos, se quisermos, a entender a prática do desenho na obra de Maria Capelo. O que vemos é uma repetição obsessiva da mesma paisagem; esboços daquilo que poderia ser a verdade daquele lugar no momento exacto em que este se revela no papel — e as pinceladas são de tal ordem que nos dão a sensação que foram feitas com a mesma rapidez de uma imagem revelada no papel fotográfico, ou seja, no mesmo instante. No entanto, como diria Jean-Luc Nancy: 

“Que esta coisa tenha a reputação de corresponder a um objecto real ou que ela se configure por si mesma, e sem ser figuração de nada, não há aí uma diferença essencial, pois a sua essência, precisamente, consiste toda na sua maneira, no seu modo, na rapidez do seu gesto, na força do seu movimento, o peso ou a ligeireza do seu traço” (Nancy, O Prazer no Desenho 2022, 20).

A mão e o trabalho desta, em conjunto com o braço e o resto do corpo todo, coloca-se diante da natureza sem se munir de uma parafernália de instrumentos que a submetem à sua representação real ou realista, apenas faz uso do papel e tinta da china para captar o instante, um atrás do outro, de tal forma que nenhum desenho aparece acabado, porque o desejo é o de saltar para o próximo desenho e começar de novo logo que a paisagem mude. Esta repetição dá aos desenhos uma qualidade de fotogramas, ou seja, eles podem ser vistos pela sua dimensão cinematográfica. No seu conjunto, eles oferecem uma visão panorâmica do lugar: ao mesmo tempo que são autónomos conversam entre si numa narrativa que se desdobra e multiplica dentro de si mesma, sem princípio nem fim.

 

Maria Capelo

MAAT

 

Sara Magno  [Lisboa 1983] é investigadora na área de Estudos da Cultura no CECC — Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Universidade Católica Portuguesa. Escreveu uma tese de doutoramento com o título Documentality in Contemporary Art: Paraesthetic Strategies in the Works of Salomé Lamas, Jeremy Shaw, and Louis Henderson. Concluiu o mestrado em Comunicação e Arte na Universidade Nova de Lisboa e a licenciatura em História da Arte na Universidade de Lisboa. Actualmente é co-editora da Diffractions, revista interdisciplinar e transcultural dedicada ao estudo da cultura.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

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Imagens: Maria Capelo: O Dia já Fecha as Portas. Vistas da exposição no MAAT. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia da artista e do MAAT-Fundação EDP.

 

Nota:

[1] Benjamin em “Commentaries on Poems by Brecht” 1998, 51. Tradução da autora.

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