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André Cepeda: Sopro

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Sara Magno

 

A cultura do não fazer nada 

 

 

(…) a salvação consiste numa interrupção radical do agora. Só um anjo da inactividade estaria em condições de pôr termo à ação humana, que, como é inevitável, se transforma no apocalíptico.

Byung-Chul Han, Vita Contemplativa (2022)

 

(…) NO CULTIVATION, that is, no plowing or turning of the soil. For centuries, farmers have assumed that the plow is essential for growing crops. However, non-cultivation is fundamental to natural farming. The earth cultivates itself naturally by means of the penetration of plant roots and the activity of microorganisms, small animals, and earthworms.

Masanobu Fukuoka, The One-Straw Revolution (1978)

 

 

 

Um baldio é um terreno não cultivado, abandonado e que não tem valor nem utilidade para os humanos. É um terreno que deixou de ter (ou que nunca teve) um propósito produtivo e onde frequentemente se encontram entulho e restos de edifícios desmoronados. É um lugar onde a intervenção humana não se faz sentir por um longo período de tempo e, por esse motivo, um terreno baldio permite-nos refletir, numa microescala, acerca do que aconteceria se a vita activa desse lugar à vita contemplativa, numa escala global.

Um terreno baldio nos arredores de Lisboa serve de cenário para as duas personagens que figuram no primeiro vídeo realizado por André Cepeda, atualmente em exposição no espaço Rialto6.[1] Tal como a câmara que as filma, as duas mulheres que vemos estão fixas no lugar: impassíveis e imperturbadas, elas deitam-se sobre o mato seco de um baldio. Os únicos movimentos perceptíveis são o da respiração e o reflexo de pestanejar dos olhos, que se mantêm entreabertos sem qualquer finalidade aparente. Além disso, pouco ou nada acontece — quando muito fuma-se um cigarro. 

Neste torpor — que pode ter sido causado tanto pelo tédio e a renúncia, como pela reflexão e a contemplação, ou simplesmente pela espera — elas dão corpo ao “anjo da inatividade” que, segundo o autor coreano Byung-Chul Han acima citado, representa a única salvação para a sobrevivência da humanidade na Terra. Tédio, renúncia, reflexão, contemplação e espera são “ações” que pertencem ao vocabulário da inatividade, noutras palavras do “não-fazer nada” que “é mais poderoso do que tudo o que é feito e realizado” (Han 2022, 53). 

Estes anjos da inatividade sugerem-nos de forma subtil e artificiosa que o futuro da humanidade não depende apenas do poder das pessoas que atuam, mas também do renascimento da capacidade de não fazer nada.[2] Pode ler-se aqui uma lógica semelhante à prática da “agricultura do não fazer nada” de Masanobu Fukuoka — pioneiro da agricultura selvagem que acredita que as técnicas agrícolas modernas destroem a natureza e em alternativa propõe que devemos utilizar apenas as possibilidades ou forças já existentes na natureza uma vez que “a terra se cultiva a si própria naturalmente,” como podemos ler na epígrafe. 

A sequência de planos fixos e longos termina com a imagem de quatro colunas de cimento e betão armado corrompidas pelo mato que lhes cresce por dentro; um processo lento de decomposição das estruturas e simultâneamente de recomposição da Terra. Estas colunas que, tal como o curador Joerg Bader comenta no pequeno livro que acompanha a exposição, não apresentam qualquer significância estética, são o mote para o desenvolvimento de uma investigação sobre um conjunto de ideias ou representações que remontam à antiguidade clássica. 

No piso inferior do espaço expositivo encontra-se uma série fotográfica que é o resultado da observação do legado histórico que se tornou num símbolo para a identidade europeia, a Acrópole de Atenas, conhecida por consistir em três espaços que representam três domínios da vida humana: oikoságora e temenos — que correspondem ao domínio da casa e família, ao domínio da vida pública ou política e ao domínio da vida religiosa ou contemplativa, respectivamente. 

Na Akro-pólis (literalmente, cidade alta ou parte alta da cidade) de Cepeda, no entanto, não existe uma separação evidente entre estes três domínios. Pelo contrário, eles parecem confluir para temenos, a vida contemplativa. A primeira imagem mostra-nos uma pólis vazia, cortada pela luz rasante de um sol perto da linha do horizonte. Quer o nascer-do-sol ou pôr-do-sol são momentos que convidam à pausa e à contemplação — já Homero dizia: “viver e isto quer dizer: contemplar a luz do sol.”[3] De forma semelhante, tanto esta primeira imagem como as que se seguem nesta série fotográfica convidam ao estado contemplativo que vimos anteriormente no vídeo em loop no andar de cima. Elas não convidam à ação, mas sim à “não-ação;” a tornarmo-nos também nós, enquanto espectadores, em “anjos da inactividade.” A Acrópole de Cepeda é tudo menos um palco para o pathos da ação. E, no entanto, a inatividade aqui representada continua a ser um gesto radical que nos obriga, tal como muitos dos trabalhos expostos no Rialto6,[4] a reconfigurar e a refletir acerca do nosso posicionamento enquanto humanos no mundo. 

Na sua reflexão filosófica sobre a vita contemplativa, Han diz-nos que a nossa relação com a natureza não é determinada pela contemplação mas pela ação. O ser humano atua na natureza submetendo-a por completo à sua vontade e, deste modo, desencadeia processos que não surgiriam sem a sua intervenção e que conduzem ao antropoceno —definido aqui como sendo o resultado da submissão total da natureza à ação humana, assinalando o momento histórico em que a natureza é completamente absorvida e explorada pela ação humana levando à catástrofe ambiental. Para o autor, a solução implica uma pausa como interrupção à continuação da ação humana. Ele escreve: 

“Sem dúvida que é necessário uma ação determinada para reparar as consequências catastróficas da intervenção humana na natureza. Mas se a causa da desgraça iminente foi a ação humana… então deve aplicar-se uma correção à própria ação … é necessário aumentar a parte contemplativa da ação, ou seja, que a ação se estenda à reflexão” (Han 2022, 47-48).

A viagem à Acrópole enquanto potenciadora de um estado contemplativo — que pode ser simultaneamente entendido como um gesto político (podia até dizer-se “activista” se nos mantivermos perto do argumento de Han), não deixa de ser uma ideia romântica. Mas romântica talvez não no sentido idealista e utópico, mas no sentido em que “a compreensão da natureza por parte do romantismo tem o potencial de rever a nossa relação instrumental com a natureza" (Han 2022, 91). A revisitação da Acrópole pode ser vista como uma investigação ou procura de uma reconciliação entre o humano e a natureza. Não é por acaso que a série inclui a imagem de um par de mãos vincadas pelas linhas da vida lado a lado com uma imagem de uma esfera de mármore, essa pedra metamórfica raiada pelas linhas da vida da Terra — ou não terão os humanos e a Terra um destino paralelo?  

“O romantismo primitivo,” diz-nos ainda Han, “é uma ideia estética e política que tem características universais — aspira a uma família mundial para lá da nação e da identidade” (Han 2022, 96). Pode ser um erro ignorar a nostalgia romântica de Cepeda e o seu desejo de voltar à tradição clássica, e considerá-la como anacrónica ou regressiva. O estado contemplativo e a “ética da inactividade” que Cepeda toma como norma neste trabalho fotográfico apontam para momentos tão poderosos como aquele de Bartleby que se tornou famoso por dizer “I would prefer not to”[5] ou de Tomás de Aquino quando escreve: “É a felicidade na contemplação, em direção à qual a vida política no seu conjunto parece estar organizada.”[6]

A contemplação, a pausa, a reflexão, e a inactividade fazem parte do fôlego que se ganha entre momentos de produtividade. Estas “ações” não encontram lugar no léxico capitalista, a menos que seja para tornar o humano mais ainda mais produtivo. Sem esse objectivo elas são precisamente aquilo que oferece resistência ao capitalismo e consequentemente resistência ao excesso de produção que este desencadeia. A cultura do não fazer nada é o fôlego, o “sopro de vida” que o planeta ganha enquanto simplesmente paramos para contemplar.

 

André Cepeda

Rialto6

 

Sara Magno [Lisboa 1983] é investigadora na área de Estudos da Cultura no CECC — Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Universidade Católica Portuguesa. Escreveu uma tese de doutoramento com o título Documentality in Contemporary Art: Paraesthetic Strategies in the Works of Salomé Lamas, Jeremy Shaw, and Louis Henderson. Concluiu o mestrado em Comunicação e Arte na Universidade Nova de Lisboa e a licenciatura em História da Arte na Universidade de Lisboa. Actualmente é co-editora da Diffractions, revista interdisciplinar e transcultural dedicada ao estudo da cultura.

 






André Cepeda: Sopro. Vistas gerais da exposição no Rialto6, Lisboa 2023. Fotos: Vasco Stocker Vilhena. Cortesia do artista e Rialto6. 


Notas:

 

[1] Rialto6 é um espaço expositivo independente localizado no mesmo edifício onde moram Maria e Armando Cabral, colecionadores de arte, em Lisboa, e que se distingue por não ter um programa predefinido e por se dedicar a apoiar a produção de projectos artísticos com cariz experimental e inovador, contribuindo desta forma para a cena artística portuguesa.

[2] Numa visita à exposição com André Cepeda perguntei-lhe o que estavam estas mulheres a fazer, ao que ele respondeu: “não estão a fazer nada, simplesmente estão. O que elas fazem não é relevante para este trabalho.” Esta ideia de que elas não estão fazer a nada e a relação disto com o livro Byung-Chul Han levou-me à reflexão que proponho aqui; no entanto, essa relação não é evidente na exposição e muitas outras relações poderão surgir da experiência deste trabalho.

[3] Homero, Ilíada; citado em Heidegger, Os pré-socráticos (1978) p. 132.

[4] Destacam-se, por exemplo, as seguintes exposições: Language is Foreign de Dora Garcia, 1983 de João Pedro Vale + Nuno Alexandre Ferreira, Bassness de Emily Wardil, bem como a exposição Alka-Seltzer de Jorge Queiroz que acontece, em paralelo, com a actual exposição Sopro de André Cepeda.

[5] Herman Melville, "Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall Street", originalmente publicado em 1853.

[6] Citado em Han, Vita Contemplativa (2022), p. 60.

 

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