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Em Matéria de Matérias Primas

1 © António Jorge Silva-AMJP.jpg
Sara Magno

Pomar: uma estrutura geradora de relações

 

This is an event at its purest and most minimal: something shocking, out of joint that appears to happen all of a sudden and interrupts the usual flow of things; something that emerges seemingly out of nowhere, without discernible causes, an appearance without solid being as its foundation.

― Slavoj Žižek, Event [2014]

 

Há momentos em que nos sentimos convidados a mergulhar na actualidade e a exposição Em Matéria de Matérias Primas, que conta com a curadoria de Sara Antónia Matos no Atelier-Museu Júlio Pomar1, é um deles. Esse convite, contudo, é-nos feito de uma forma indirecta e subliminar. Passando em ângulo oblíquo por diferentes densidades temporais e materiais, revisitamos a série de pinturas Os Mascarados de Pirenópolis [1987-1988] de Júlio Pomar, que nos é apresentada como uma “estrutura geradora de relações”2 e por conseguinte incluindo uma perspectiva sobre esta obra partindo da óptica de André Romão, Jorge Queiroz e Susanne Themlitz.

Em Janeiro de 1988, Manuel Castro Caldas visitou o atelier, actual museu, de Júlio Pomar e vendo a série ainda em processo de criação, coloca-se a si próprio o problema de como caracterizar e raciocinar sobre estas imagens, e escreve:

 

A tinta, a mancha colorida, virá assim, desde o início, configurar a imagem. Trata-se então de começar [e depois prosseguir, alternando…]. Mas em função de quê — de que «modelo» — pode o pintor começar, prosseguir? De uma imagem na sua memória [os cavalos com máscaras de touro, onça, diabo e morte, que Pomar realmente viu no Brasil]? De uma imagem presente, à sua frente [fotografias das máscaras num livro que Pomar consulta durante o período de elaboração dos quadros]? E em que termos guiariam estes modelos a mão do pintor — na fidelidade à sua aparência, à sua parecença?

— Manuel Castro Caldas, Pomar: Os Mascarados de Pirenópolis [1988]

 

Noutras palavras, pode-se dizer que aquilo com que Castro Caldas se [pre]ocupa neste texto é em descobrir qual é o «evento da pintura«, ou seja, o evento que dá origem à pintura e, em simultâneo, o momento em que a pintura passa a ser evento.

O que guia a mão do pintor, continua Castro Caldas, é então desde logo uma estrutura abstracta, gerando relações, permitindo o trabalho.

Apesar de sediado na experiência real de um evento, no final é a estrutura abstracta da memória desse evento que guia a mão de Pomar. Podemos imaginar várias razões pelas quais a Festa do Divino Espirito Santo de Pirenópolis, no Brasil — evento a que reporta esta série de pintura — ficou marcada na memória do pintor. Esta festa é uma manifestação do catolicismo popular que chegou ao Brasil na bagagem cultural dos açorianos, difundida pela Rainha D. Isabel no século XIV em Portugal. No Brasil, as festas chegam a durar até duas semanas, durante as quais as relações sociais entre os participantes são espelhadas numa arena performativa caindo por terra as diferenças que os definem fora deste espaço. No seu livro Festas e utopias no Brasil colonial [1994], Mary Del Priore descreve este evento como sendo o “espaço de múltiplas trocas de olhares, de tantas leituras e de tantas funções políticas e religiosas, a Festa e o seu calendário transformaram-se, no período colonial, na ponte simbólica entre o mundo profano e o mundo sagrado,” e acrescenta ainda que as relações da sociedade no ambiente eclesial “era uma oportunidade para socializar afetos ou desafetos, interesses ou negócios, poder ou subserviência.”

Este ambiente performativo no qual se incluem as cores exuberantes dos trajes usados por homens montados a cavalo encabeçados por máscaras de bestas, a dissolução de hierarquias sociais ou morais, e uma espécie de celebração quase irracional do colonialismo em terras indígenas, marcou profundamente Pomar que se refere ao resultado deste evento nas suas pinturas como “aparições”3. O que ressalta, ou “aparece” nestas pinturas são figuras que remetem para ambientes dantescos e quixotescos — homens, centauros, bestas que ganham forma e ritmo a partir de um jogo de acasalamento entre a pintura da mancha colorida e o desenho do traço do carvão — a cavalgar frontalmente em direcção ao espectador.

Eventos, como refere o controverso Slavoj Žižek acima, são acontecimentos que rompem o curso normal da vida e provocam mudanças significativas quer seja a nível pessoal ou social. Um evento pode ser uma epifania, o acto de nos apaixonarmos, ou alguma coisa trivial que, no entanto, provoca uma mudança de tal forma abismal após a qual é impossível regressar às condições do passado. Uma pandemia como a que vivemos recentemente é certamente um evento após o qual, por mais que tentemos regressar às condições do passado, ficamos para sempre condicionados pelo trauma dessa catástrofe. Talvez seja por causa desse trauma recente e colectivo que, quando vejo os Mascarados de Pirenópolis de Pomar, não posso deixar de reflectir no facto de a ideia de máscara[do] me aparecer à partida contaminada. E talvez seja por esse motivo também que esta série me convide tanto a mergulhar na actualidade e a reflectir, mais uma vez, sobre estes dois temas: evento e máscara.

A máscara sempre foi um elemento cultural relevante que assume diversos significados e funções ao longo da história. Máscaras são comuns às festas religiosas, cerimónias e rituais de iniciação ou morte, e sempre inspiraram a produção de significado, como vemos na série dos Mascarados de Pirenópolis. Apesar de não ser explícito no projecto curatorial desta exposição, parece-me que está fortemente implícito que uma das funções do projecto é, precisamente, inspirar a produção de novos significados relativamente à noção de máscara e tornar a revisitação desta obra num evento em si para os três artistas convidados.

No trabalho de André Romão destacam-se desenhos que resultam da observação de uma série de outros desenhos de Pomar realizados durante a sua visita ao Brasil [Xingu e Coqueiros, 1987]. Estes desenhos são variações sobre a figura da máscara e das suas potencialidades de esconder e revelar simultaneamente. O elemento comum nestes desenhos são os “olhos” que animam representações de elementos naturais tais como folhas, troncos de árvores, conchas, entre outros.

As esculturas de Susanne Themlitz fazem-nos reflectir acerca da fragilidade das estruturas, quer sejam elas físicas ou metafísicas. As canas de bambu que formam a peça central, Entre 1997/2022, são quase uma extensão do traço a carvão nos quadros de Pomar e aparecem agora em grande escala reforçando, mais uma vez, a ideia de que existe uma «estrutura», mas por trás dela existe uma «mancha» que não se contenta dentro do «traço». Aqui pode ler-se uma intenção de transgressão marcada pelas manchas de cor do tecido trabalhado que rompe estrategicamente com a linha da estrutura de bambu.

Os quatro quadros de Jorge Queiroz, por sua vez, levam-nos para um submundo de luz e sombra. Eles não se centram na aparição de uma figura apenas, como vemos nas pinturas de Pomar, mas num conjunto complexo de figuras que, por mais que tentemos mantê-las debaixo de olho, elas aparecem e desaparecem estranhamente do nosso campo de visão. São elas próprias figuras-máscara que se solvem e dissolvem num manto de cores contrastantes, pois, tal como Pomar, Queiroz tem pouco pudor quanto ao uso da cor nas suas pinturas.

A série de pinturas Os Mascarados de Pirenópolis de Pomar, como referido no início, é aqui tida como uma “estrutura geradora de relações” que não se esgotam nas que aqui se destacam e que, muito provavelmente, não se podem se quer conter num único texto. Mas podem-se eventualmente deixar aqui algumas pistas para aquilo a que Castro Caldas se refere como uma certa “modulação em nós do acontecimento-espacialização, da transformação” [ênfase original] conduzida pela obra de Júlio Pomar tanto em 1987-1988 como agora em 2022-2023.

 

 

 

 

Atelier-Museu Júlio Pomar

 

 

 

 

 

 

Sara Magno [Lisboa 1983] é investigadora na área de Estudos da Cultura no CECC — Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, da Universidade Católica Portuguesa. Escreveu uma tese de doutoramento com o título Documentality in Contemporary Art: Paraesthetic Strategies in the Works of Salomé Lamas, Jeremy Shaw, and Louis Henderson. Concluiu o mestrado em Comunicação e Arte na Universidade Nova de Lisboa e a licenciatura em História da Arte na Universidade de Lisboa. Actualmente é co-editora da Diffractions, revista interdisciplinar e transcultural dedicada ao estudo da cultura.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

 

 

AJS2210-AMJP1-S50 (2638) [E] Em matéria de Matérias-Primas, [L] AMJP
(2022 Em matéria) AJS2210-AMJP1-A60 (2528) [E] Em matéria de Matérias-Primas, [L] AMJP
(2022 Em matéria) AJS2210-AMJP1-A80 (2533) [E] Em matéria de Matérias-Primas, [L] AMJP
AJS2210-AMJP1-A90 (4371) [E] Em matéria de Matérias-Primas, [L] AMJP
AJS2210-AMJP1-R50 (2623) [E] Em matéria de Matérias-Primas, [L] AMJP

 

Em Matéria de Matérias Primas, Atelier-Museu Julio Pomar [2022]. Fotografias: Jorge António Silva. Cortesia AMJP.

 


 

 

Notas:

 

 

 

1EM MATÉRIA DE MATÉRIAS-PRIMAS, Exposição com Júlio Pomar, André Romão, Jorge Queiroz e Susanne Themlitz. Estará em exhibição no Atelier-Museu Júlio Pomar até ao dia 12 de Março 2023.

 

2Caldas, Manuel Castro (1988). “Pomar: Os Mascarados de Pirenópolis,” Gal. 111, Arco 88, Madrid.

 

3Idem.

 

 

 

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