Musa paradisiaca: The I of the Beeholder
A mais recente exposição de Musa paradisiaca, patente na Fundação Carmona e Costa, parece dizer — em provável tom de troça — que não precisa de nós, seus previsíveis espectadores. Que seríamos infra-necessários ou excedentes numa auto-suficiente coreografia de luz e de som, de uma dança privada entre objectos e imagens.
Acreditando no seu possível desdém, e entendendo o seu aparato cénico como um movimento contínuo e incessante, poderíamos pensar que The I of the Beeholder, num limite de estados de ocupação/desocupação do espaço expositivo, conduziria tanto a uma sobreposta coreografia errante ou desorientada de indivíduos em busca de ecos vindos de um outro lugar que não aquele que pisam, como, num extremo oposto, a uma espécie de teatro sem espectadores que perpetuaria a sua sobrevivência através de um esforço de concretização de visibilidades. Nada de mais contrário ao(s) sentido(s) desta exposição.
Em cada sala (num total de quatro), vive um conjunto formalmente invariável, mas diferenciado de divisão para divisão (usemos o vocabulário da casa): desenho, escultura, som. Nota-se uma economia dos gestos, uma gestão contida na construção das existências: tantos as objectuais, concretas, imagéticas, como as virtuais, invisíveis. Por isso, também das habitações.
Sentindo-nos entrar, a primeira sala activa o espectáculo como se pancadas de Molière tivessem soado. Aí, num ritmo encadeado entre um sistema lumínico e uma faixa sonora, tanto formas vindas do desenho como da escultura vão aparecendo sob os focos da luz e do som. Momento teatralizado que nos pede demora e atenção, mas que, terminado, dará lugar a idêntico fenómeno na sala seguinte. Estando o movimento de cenas iniciado, este não dependerá mais de nós para continuar o seu guião. A lógica manter-se-á numa transição linear entre as salas que compõem a trama expositiva. Resta-nos acompanhar, se assim o entendermos. E aqui a nossa autonomia entre em conflito com a de toda a exposição: alinhar vontades; responder ou não às solicitações. Contudo, o ponto onde tudo se torna mais perturbador, e por isso mais interessante, está justamente no facto de a sequência entre salas poder terminar — não sem antes completar um ciclo —, como que sublinhando que há um sentido particular no (seu) estar, uma irrepetibilidade de toda a (nossa) experiência. Assistindo ao seu emudecimento e a um desvanecimento geral da luz, The I of the Beeholder retorna à latência da espera. Posição tensa de um sono leve em permanente estado de alerta.
Não havendo simultaneidades entre espaços (aquele que entrar depois não reactivará o movimento se este estiver já em curso), nem se tratando de um loop o modo como a dimensão espectacular de The I of the Beeholder quer ritmar o fenómeno perceptivo do seu potencial espectador (o que, neste caso específico, paradoxalmente significaria o seu esquecimento em detrimento da circular manutenção do sistema), antes se perspectivará um plano de continuidades-outras. Desestabiliza-se, por isso, a lógica mais normalizada — e, diríamos, enviesada — da (nossa) relação de habitar uma exposição, em detrimento de um horizonte onde um outro habitar — de um espaço, de um tempo — se produza de modo implicado. Dentro dessa cuidadosa administração das ocupações, onde a estética edificada responde à estática entre o nosso corpo e os dispositivos, qualquer percurso que possamos fazer densificar-se-á verdadeiramente no caminho para a formação de um plano de contemporaneidade entre a experiência que fazemos e a forma como a exposição se vai revelando, tornando essa actualização constante num elo temporalizado de ressonâncias mútuas. Somos, pois, muito necessários a esta exposição — “the beauty is in the eye of the beholder”: trocadilho fértil da expressão que a nomeia. Mas mesmo não sendo de Beleza o que aqui se trata, deveremos consentir na convocação que nos é feita, podendo ser esse I que completa o sistema: o apicultor (tradução livre de beeholder) que cuida da colmeia.
Mas se tal podemos equacionar, porque o podemos sentir, há igualmente que prever que a colmeia terá uma vida própria. Isto porque as presenças que cada sala contém em espera se relacionam entre si em orgânica permeabilização. Desejam-se reciprocamente.
O desenho que Eduardo Guerra e Miguel Ferrão (dupla instigadora da Musa paradisiaca) fizeram e que pediram para ser traduzido. A voz de Lotte (é isso que ouvimos em cada faixa sonora) traduzindo directamente o desenho através da palavra. E a escultura, construída pela dupla, que traduz as interpretações de Lotte.
A tradução não é, porém, um exercício unicamente preocupado com a linguagem. É uma captura, tal como Michaux a pensou. Tal como esse autor a praticou — “fazer-me insecto para capturar melhor”. É nesse sentido que falamos em desejo. Lotte faz-se desenho com a boca, come-o, incorpora-o, ela torna-se desenho. Por isso, no final de cada gravação já só ouvimos sons quase guturais: não a voz do desenho a viver em Lotte, mas a voz de Lotte tornada desenho porque todo o seu corpo já o é. Também a escultura se torna, assim, desenho. E também nós, se assim estivermos predispostos, nos podemos tornar nele. A autonomia da colmeia esbate-se nesse movimento.
Talvez, por isso, todos os desenhos que habitam a Fundação Carmona e Costa não tenham qualquer nomeação: não se consumam por si, precisam de todo o processo de vivências comunicantes. Talvez, por isso, todas as imagens que vemos rir-se-ão de nós se as entendermos como meras imagens. Isto porque, parece, não existe sequer representação em tudo o que nos é apresentado, mas antes seres viventes, que mesmo razoavelmente autónomos extravasam em direcção a outra coisa. E tudo se joga aí: na possibilidade, praticada ou iminente, de frustração de um Eu fechado sobre si. A espécie de Eu identitário e estabilizado que cada obra possa eventualmente ser. Mas também o nosso Eu: desestabilizado pelo som que nos toma por inteiro, entre um dentro e um fora, fazendo-nos também desenho; ou pelas esculturas que, numa materialidade excessiva, a de uma imagem saturada, anseiam ser tocadas. Tudo, todos (nós incluídos), se podem encontrar em estado de devir, no agenciamento contínuo de intensidades vindas de tudo o que no espaço da galeria existe. Tudo está em ex-posição: saindo de si rumo ao Outro.
A estética, que é estática, transforma-se numa ética. Frustram-se, por isso, as mais simplistas expectativas em relação ao que ali se possa ver e ouvir; do que é ver, ouvindo, e do que é ouvir, vendo. Ou melhor: das expectativas que direccionam tanto o próprio ver como o ouvir. Os desejos a existirem livremente para se tornarem afectos, numa conversa composta por vários intervenientes que se conhecem entre si. Essa que é a premissa e potência sempre presentes da prática da Musa paradisiaca.
Se, então, a marca de uma autonomia ainda persiste é porque a própria conversa, ou os afectos que nela são gerados, que de alguma forma se conseguem emancipar de todos os corpos e de todos os objectos para criar um corpo-outro revestido de uma qualquer insondabilidade activamente mantida e que se quer secretamente gozada. Uma presença ondulatória, uma energia inteligente, que habita a exposição e que esta exposição também é. Talvez seja esse organismo o The I of the Beeholder. A sua respiração acompanha-nos: sentimo-la atrás da orelha.
David Revés (Lisboa, 1992). Investigador e curador independente. Mestre em Estudos Artísticos, vertente Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2018). Tem explorado a área dos novos media e redes sociais, interessando-se pelos seus cruzamentos com a arte, museologia, sistemas expositivos e pelas questões ligadas à figura do espectador. Desenvolve uma prática crítica e ensaística com a qual contribui regularmente para algumas publicações, projectos de âmbito artístico ou académico.
Musa paradisiaca: The I of the Beeholder. Vistas da exposição na Fundação Carmona e Costa. Cortesia de Musa paradisiaca e Fundação Carmona e Costa.