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Carlos Antunes e Désirée Pedro — uma entrevista

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Catarina Rosendo

Círculo de Artes Plásticas de Coimbra: A insatisfação e a dádiva como forma de resistência

Desde que assumiram a direcção do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, em 2010, Carlos Antunes e Désirée Pedro têm vindo, lenta e seguramente, a reinscrever o lugar deste polo artístico no contexto artístico nacional. Arquitectos de formação, foram responsáveis pelo projecto de alterações que transformou uma antiga área de reservas da Biblioteca Municipal num espaço expositivo mais bem preparado e complementar ao original edifício da Rua Castro Matoso, que guarda a memória de algumas das acções artísticas mais experimentais e gregárias da década de 1970. Foi sob a sua direcção que o edifício obteve, em 2016, a classificação de Monumento de Interesse Público e, ao mesmo tempo que tem dado continuidade à programação regular de exposições, o CAPC criou a Anozero — Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, em 2015, ampliando a ressonância nacional das suas acções e agregando a Universidade e a Câmara Municipal como parceiros essenciais no evento. Paralelamente, as importantes tarefas, em curso, de inventariação e organização da espólio artístico, do arquivo fotográfico e documental e da biblioteca, têm sido entendidas, por esta dupla que está ligada ao Círculo desde a década de 1980 e conhece por dentro a atribulada história que percorreu as sucessivas direcções, como um contributo fundamental para a consolidação do percurso e da história desta instituição criada em 1958 e com actividade ininterrupta desde então. A revista Contemporânea falou com Carlos Antunes e Désirée Pedro no Convento de Santa Clara-a-Nova, a poucas semanas da abertura da 3.ª edição da Bienal Anozero.

Catarina Rosendo (CR): O que é o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra?

Carlos Antunes (CA): Desde a primeira hora, é um lugar de insatisfação, o que é normal quando falamos em algo ligado à arte contemporânea, e é também um lugar colectivo. Se há duas características que vêm do início até hoje, são estas. A insatisfação está ligada a todas as áreas criativas, no sentido em que há sempre uma coisa qualquer por resolver e nós propomos-nos, pelo menos, reflectir acerca disso. Isto é inerente ao processo artístico. Em Coimbra essa insatisfação começou de uma maneira evidente com um conjunto de alunos da Universidade, entre eles Rui Vilar, Mário Silva e outros, que não encontravam na cidade um lugar para o ensino estruturado da arte que desejavam. Isto é uma insatisfação; e é uma insatisfação que era então muito objectiva mas que se mantém como uma permanência em toda a longa história do Círculo até hoje e este momento tão fundamental para a nossa actividade que é a Bienal. A ideia de colectivo também é transversal à história do Círculo porque, desde a primeira hora, os alunos organizaram-se de forma colectiva em torno de um ateliê de pintura, contratando professores e aprendendo de maneira informal. As vanguardas que tomaram conta do Círculo nos anos 1970, e que se prolongaram pelos anos 1980, tinham também uma dimensão do colectivo.

Esta instituição tem um percurso extraordinário criado em torno desta dupla ideia: uma insatisfação evidente e a ideia do colectivo como dominando todo o processo de criação.

CR: O Círculo é criado em 1958 enquanto secção da Associação Académica de Coimbra. Em 1980 há uma alteração dos estatutos e o Círculo passa a ser um Organismo Autónomo da Associação Académica. E, em 2016, é classificado como Monumento de Interesse Público pela Direcção-Geral do Património Cultural. Estas alterações e estes estatutos resultaram ou influenciaram de alguma maneira o programa e as actividades de artes visuais do Círculo?

Désirée Pedro (DP): Nunca tive muito claro que as alterações no colectivo, na programação, no modo como o Círculo se organizou e gerou elementos de cultura, desde as aulas, às instalações físicas, às exposições e às acções e performances, se pudessem associar a esses três momentos. Mas talvez seja possível tentar relacioná-los e será curioso perceber quais os reflexos disso. Em 1958, existe um grupo de pessoas com vontade de iniciar-se no mundo das artes plásticas contemporâneas e entende que isso deve ser feito através da formação. E como não havia em Coimbra um sítio onde obter essa formação, decidem eles criá-la, apesar de tudo de modo não tão informal quanto isso, porque contratam e trazem até si pessoas, de Lisboa e do Porto, que têm formação nessa área, que sentiam não existir em Coimbra. Como são estudantes da Universidade, resulta natural que seja mais uma secção, um núcleo que a Associação Académica permite que se constitua, como o CITAC, o TEUC, entre outros. Ou seja, o Círculo é um lugar de experimentação que está desde a sua génese muito ligado à comunidade universitária. 

Em 1980, a revisão de estatutos e o registo no cartório do Círculo enquanto Organismo Autónomo da Associação Académica resultam do reconhecimento da formação de tipo mais experimental que o Círculo estava a fazer, já desde o início dos anos 1970, em que uma formação estruturada como alternativa ao ensino nas Belas-Artes começou a ser promovida pelo João Dixo e pelo Ângelo de Sousa, e depois pelo Alberto Carneiro, que em 1980 estava, com a Túlia Saldanha, na Direcção. A classificação de Monumento de Interesse Público, em 2016, resulta de um trabalho que nós iniciámos quando chegámos ao Círculo em 2010. Éramos sócios do Círculo desde 1988 e quisemos perceber o que havia sido a instituição desde o início até ao presente e o que é que poderíamos fazer para manter o Círculo e acrescentar-lhe algo mais. Isso foi o que sempre aconteceu neste colectivo: quando chega alguém de novo, acrescenta um pouco mais ao que o Círculo já era. O reconhecimento patrimonial e institucional obtido em 2016 foi muito importante, porque correspondeu ao legitimar de tudo o que o Círculo havia feito até então e deu-nos fôlego para uma nova aventura, a Bienal Anozero. O Círculo, com a criação da Bienal, criou uma nova estrutura para repensar a sua estratégia de reflexão sobre a vanguarda.

CA: Em 1980 há uma espécie de cisão com a Universidade, considerada então uma instituição anquilosada. Este corte, por parte das pessoas que a Désirée acabou de nomear, foi entendido como um corte com a academia e, em particular, com a Associação Académica. Há relatos que testemunham esse corte, bem como algumas situações violentas, incêndios... Foi uma fase dura, viviam-se tempos de luta. Esse corte tem que ver com isso.

CR: Esses incêndios são metafóricos ou ocorreram de facto?

CA: Ocorreu um incêndio no Círculo, sim, por volta de 1980, que se julga ter sido uma acção, nunca comprovada, de alguns elementos de outros núcleos da Associação académica às actividades que lá se desenvolviam e à forma como ele reclamava uma total independência da academia.. Era o rescaldo do 25 de Abril e era comum resolverem-se os problemas de uma maneira mais radical, ultrapassando formas prévias e diplomáticas mais inteligentes. A nós parece-nos que as actividades mais ou menos radicais do Círculo, inerentes àquilo que são as práticas artísticas, não tem nenhuma incompatibilidade com a academia. A academia de 2020 não tem nada que ver com a academia de há quarenta ou sessenta anos atrás e não vemos nenhuma inteligência em reivindicações marginais ou alternativas, porque essas qualidades existem também no pensamento académico mais sofisticado. A academia é um lugar de encontro de formas muito díspares de olhar para o mundo, é preciso seleccionar aqueles que estão do lado daquilo que é pertinente e relevante fazer. A reaproximação à academia e a um pensamento mais estruturado sobre a própria história do Círculo é algo que nos interessa muito, se calhar até pelo facto de sermos os dois professores da Universidade de Coimbra, mesmo que convidados.

Isto permite que uma senhora com 60 anos, que é o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, olhe para a sua história com alguma frieza, para a sua história fratricida, de sucessões tensas, e nós achamos que isso não faz nenhum sentido. Fez à época, e achamos que essas lutas permitiram que o Círculo fosse avançando. Mas também achamos, e a História nos julgará, que não precisamos de fazer esse corte com o passado. Se calhar daqui a dez anos vão considerar-nos as pessoas mais reaccionárias da história do Círculo, porque quebrámos essa tradição que era, em boa medida, o combustível que permitia o Círculo avançar.

CR: Essa luta fratricida, se fortaleceu o Círculo e fê-lo resistir seis décadas, o que não é comum no tecido institucional português, também contribuiu, em alguns momentos, para apagar a relevância do Círculo no panorâmico artístico nacional.

CA: Claro.

DP: Sim, porque essas cisões tumultuosas faziam-se com o passado longínquo ou com o passado recente. Cortavam a direito e levavam tudo à frente. Era uma política de terra queimada em que não interessava falar das coisas extraordinárias que se fizeram ou das menos boas. Eram assuntos dos quais não se falava por parte de quem chegava e decidia começar tudo de novo, considerando que tinha um espaço em branco para começar. Isso está circunscrito a um tempo e a uma maneira de fazer as coisas mas, como o Carlos disse, não precisamos de fazer isso. Como estamos no Círculo desde 1988, apanhámos ainda ecos dessas lutas fratricidas e entrámos, até, no olho do furacão de duas delas. Parece-nos que, havendo bom senso, todos os que andamos à volta do Círculo tínhamos muito a ganhar se fizéssemos um esforço para esquecer esses momentos duros e trabalhássemos em tudo o que Círculo conseguiu fazer em 60 anos. E isso inclui perceber que toda a história do Círculo é relevante. A nossa direcção é apenas mais uma e depois hão-de vir outras, isto se quisermos que o Círculo continue.

CR: Essa espécie de nota de intenções que tem pautado a vossa direcção tem-se concretizado objectivamente na aproximação às pessoas envolvidas nessas lutas fratricidas? Se sim, que tipo de reacções sentem nessas aproximações?

CA: Essas lutas tiveram um contexto que determinou que tenham ocorrido assim. À época, se calhar teríamos feito da mesma forma, é importante que fique claro, não estamos a julgar nada. Dito isso, a atitude de corte que lhes pareceu óbvia já não nos faz sentido, hoje. Nós estamos a fazer uma política de reaproximação, no sentido de dar espaço para que todos estes tempos diferenciados possam viver em conjunto. E vemos do lado dessas pessoas a satisfação por esta espécie de reencontro colectivo, que passou para outras gerações. Temos uma admiração enorme por todas essas pessoas que se incompatibilizaram, e queremos ter uma visão equidistante delas todas. Temos um enorme respeito, quase reverencial, pela Túlia Saldanha, pelo Alberto Carneiro, pelo António Barros, pelo Vítor Diniz...

DP: Pelo Rui Órfão...

CA: Pelo Armando Azevedo... Não fazia sentido eleger qualquer um deles, e muito menos continuar a aceitar essas cisões, porque de facto é isso que nos permite continuar, que nos permite olhar para uma instituição que tem 60 anos e pensar que esta gente fez uma coisa absolutamente heróica numa cidade muito adversa às práticas mais radicais.

DP: E provinciana.

CA: Eles eram uma espécie de “terceira margem” desta cidade, pegando no tema da última Bienal (2019). A “terceira margem” desta cidade era o Círculo de Artes Plásticas, durante muito tempo, juntamente com o CITAC e estruturas culturais mais pequenas que foram muito corajosas no seu pensamento. Hoje não conseguimos olhar para esse tempo, talvez por deformação académica, sem respeitar esta gente toda de forma igual, e contextualizando as suas acções. Parece-nos que é quase natural este reencontro com a história.

DP: Nas nossas primeiras tentativas de voltar a juntar estas pessoas, houve uma profunda desconfiança, porque havia um histórico que era “se se aproxima é porque há alguma coisa por trás”. Foi um pouco complicado mostrar que não havia nada disso, que a vontade era mesmo juntar e valorizar aquilo que de extraordinário se fez. Se é verdade que o Círculo teve momentos incríveis, também teve fases de apagamento que muitas vezes resultaram da luta desta gente da “terceira margem”, que se confrontava com meios nenhuns, sozinha, sem apoio de ninguém. Acredito que, ao fim de anos a tentar fazer coisas, esmorecessem. Recuperar a história do CAPC é, para nós, recuperar tudo, valorizando as coisas boas que foram feitas, e relativizar, até pela distância, as coisas menos boas que aconteceram.

CA: As fraquezas humanas não marcaram o Círculo. A grandeza humana marcou a história desta instituição. Quantas instituições podem contar uma história da arte em Portugal? Pouquíssimas. O Círculo pode.

CR: Qual é a história que o Círculo pode contar? Na vossa perspectiva, quais os momentos cultural e artisticamente estruturantes do Círculo de Artes Plásticas?

CA: Desde logo, o período inicial, com a criação de uma escola dedicada à prática da pintura de cavalete. Não se pretendia com isso transformar o mundo, mas tem o valor de permitir todo o resto da história.

DP: Depois o momento em que chega o Ernesto de Sousa, o João Dixo e o Alberto Carneiro...

CA: As vanguardas dos anos 1970 — daí aquele texto do Ernesto, “A vanguarda está em Coimbra, a vanguarda está em ti” — coincidem com esse momento, que é transformador do Círculo de Artes Plásticas na sua relação com o mundo. É daí que vêm todas as ligações com a Europa, o Fluxus, o Robert Filliou, o Wolf Vostell. Todo este período resulta também de uma coisa que normalmente não é contada nem valorizada, que é o encontro do Ernesto com o Alberto Carneiro e a Túlia Saldanha. Há a tendência de se considerar o Ernesto como uma espécie de mentor do Círculo, o que de alguma forma diminui a relevância do Círculo, e acho que isto não é verdade, o que aliás foi dito pelo Ernesto que, alinhado com as melhores práticas culturais europeias, encontra no Círculo pares que olham para o mundo da mesma maneira que ele. A energia brutal do Círculo encontrou a mundividência do Ernesto e isso faz uma conjugação extraordinária. Fizeram coisas em conjunto que, seguramente, não teriam feito sozinhos. Este momento parece-me que é o momento do Círculo de Artes Plásticas.

CR: É a altura em que o Círculo sai para a rua.

CA: Sim, através da Semana da Arte na Rua, do Aniversário da Arte, do Grupo Cores... Toda esta ideia de uma arte na rua, da arte como acção, transformadora do mundo, levando a sua dimensão política até ao limite, é neste período que acontece. E o Armando Azevedo também é fundamental. Ele está em Coimbra, é uma figura mais local, mas tem uma energia extraordinária. Também deve ser reconhecido o papel, nos anos 1990, do Vítor Diniz. Ainda hoje, muitos dos agentes que nós respeitamos, começaram no Círculo de Artes Plásticas com o Victor Diniz. Isso é incrível.

CR: Que actividades do Círculo salientam, nos anos 1990?

CA: O conjunto das três ou quatro exposições colectivas do Paulo Mendes, reforçando mais uma vez a ideia do colectivo. Parece que surgem como ruptura, mas é apenas uma ruptura geracional, porque no essencial, na sua relação com o mundo e com a arte, é uma continuidade. Não vejo aí nenhuma evidente ruptura, a não ser uma circunstância geracional, um tempo diferente que cria um desejo de autonomia em relação à hegemonia da geração anterior e aos seus mecanismos de poder. Ainda bem que assim aconteceu. Há ainda o contributo do Miguel von Hafe Pérez com as curadorias que aqui fez, as exposições da Cristina Mateus, do Miguel Leal, do Miguel Palma, do Rui Serra. Um dos melhores catálogos editados pelo Círculo é o do Miguel Ângelo Rocha, neste período. Muitas das pessoas que começaram a trabalhar nos anos 1990 fizeram as suas primeiras exposições no Círculo. O Vítor Diniz teve a mesma energia que houve nos anos 1970 e que se prolongou pelos anos 1980, quando o José Pedro Croft, o Pedro Cabrita Reis, o Rui Sanches, a Ana Léon, a Rosa Carvalho e o Pedro Calapez, expuseram em conjunto, pela primeira vez, no Círculo. O Julião Sarmento, apesar de ter uma carreira iniciada antes, também é nesta altura que expõe no Círculo.

CR: Quando é que abre o CAPC Sereia?

CA: O CAPC Sereia abre em 1992-93, sob a direcção do Vítor Diniz. Nós pertencíamos também à direcção, embora ainda estivéssemos a estudar [arquitectura] no Porto. O então presidente da Câmara, Manuel Machado, cedeu aquele espaço ao Círculo e o Vítor Diniz decidiu fazer ali um Centro de Arte Contemporânea. Como era preciso alguém que fizesse o projecto e o Círculo nunca teve dinheiro, foi na condição de estudantes de arquitectura, e de sócios, que fizemos o projecto de alterações.

CR: Esse Centro de Arte Contemporânea seria uma dependência do Círculo de Artes Plásticas ou seria autónoma?

CA: Seria um espaço do Círculo de Artes Plásticas, mas com outro nome para diferenciar.

CR: Porque é que houve a necessidade de criar esse espaço?

DP: Percebeu-se na altura, com os artistas que começavam a expor aqui, que estávamos a viver o tempo do “white cube”. Os artistas começavam a achar que o edifício Sede, todo aquele espaço cheio de memórias e de salinhas, que no fundo era uma casa, não era o mais adequado para o que queriam fazer e mostrar. Precisavam de dimensão e de um espaço abstracto. E conseguiu-se arranjar um espaço que, na origem, era a reserva dos periódicos mas não estava a ser ocupado pela Biblioteca Municipal. O que nós fizemos foi limpar tudo e fazer três salas grandes. O projecto inicial era fazer só salas, mas nós achámos que era preciso uma recepção e, devido à cada vez maior presença do audiovisual e das conferências, de um espaço que poderia servir para essas funções, um pequeno auditório. Os artistas desejariam ter as salas todas fechadas, mas nós pensámos que a relação com o Jardim da Sereia era essencial. Enquanto depósito de periódicos, aquelas salas tinham janelas muito pequeninas, no topo, e por isso rasgámo-las até abaixo. Porquê? Tal como o público, em geral, não se interessava pelas actividades do Círculo, o Círculo também não se preocupava muito em chegar a ele e comunicava para o exterior de uma maneira deficitária. Pareceu-nos que através deste gesto arquitectónico seria possível mostrar o que se estava a fazer dentro implicando o olhar de quem passa, tornando muito mais fácil e simples que essa comunicação acontecesse. Não considerámos que fosse assim tão grave, para os artistas, criar o grande pano de vidro que percorre e enquadra todas as salas. Muitos não gostaram, mas habituaram-se a isso.

CR: Como evoluiu a percepção da cidade em relação ao Círculo ao longo dos seus 60 anos?

CA: Se calhar esta é uma condição inerente à arte contemporânea associada a estes pequenos espaços, mas dificilmente nos fomos afastando de alguma visão de marginalidade, ao contrário do que gostaríamos. A adesão do público genérico da cidade sempre foi muito reduzida. Pese embora eu não gostar muito da imagem, nós fomos sempre uma espécie de “clube dos poetas mortos”, coisa que não acho especialmente atraente. A Bienal surge como um movimento que, de alguma forma, tende a alterar essa percepção. O contexto em que surge o Círculo, em 1958, e a fase do seu período heróico até aos anos 1990, são substancialmente diferentes do momento que hoje vivemos, em particular desde que ambos assumimos a direcção do Círculo em 2010. Temos a vida mais facilitada do que eles tinham na altura, mas ao mesmo tempo é-nos claro que o lugar de resistência que o Círculo representava no contexto nacional deixou de fazer sentido, porque surgiram galerias e centros de arte em números improváveis. Este lugar que existia em Coimbra, e que era o lugar das vanguardas, como dizia o Ernesto, foi sendo ocupado por imensos lugares em todo o país com imensa vantagem para todos. O Círculo já não precisava de se escudar como um inexpugnável bastião de indefectíveis da arte em Portugal, porque isso deixou de fazer sentido. O que era preciso fazer com a arte contemporânea em Coimbra era abrir a porta ao acesso público. Os dois espaços, o CAPC Sede e o CAPC Sereia, permitiram fazer isso melhor, mas a Bienal tornou isso muito mais evidente. Isto tem, para o Círculo, um risco que fazemos tudo para evitar, o de que a criação coma o criador, que a Bienal devore o Círculo de Artes Plásticas. Pela escala que tem, pela capacidade de concentrar a atenção mediática, a Bienal corre o risco de se sobrepor ao Círculo de Artes Plásticas. Isso não pode acontecer. Não acontecerá enquanto nós pudermos decidir alguma coisa. A Bienal é apenas e só uma iniciativa do Círculo de Artes Plásticas, como tantas outras, mas que tem mais escala, obriga a mais parceiros, a um volume de financiamento superior ao da actividade regular do Círculo, mas também tem a enorme vantagem de permitir recentrar a actividade da programação e fruição da arte contemporânea numa cidade que a ela é adversa. O fenómeno de evento, necessariamente associado a uma bienal, arrasta gente que a actividade regular do Círculo não consegue arrastar. O desafio mais difícil para nós é evitar este fenómeno “evento” e permitir que a Bienal seja tão só uma actividade inserida na actividade normal e contínua do Círculo de Artes Plásticas, uma actividade com diferentes momentos e graus de exposição e de ambição pública, e onde a Bienal é a apenas um desses momentos. Interessa-nos a capacidade da Bienal atrair públicos para as nossas actividades ao longo do ano. Este é o desafio maior e temos a vantagem de hoje conseguirmos ter nas actividades regulares do Círculo pessoas, de fora do país e de Coimbra, que não tínhamos antes da Bienal. Invariavelmente quando nos contactam, hoje, é pela Bienal, e temos que desfazer o equívoco e dizer que não somos a Bienal de Coimbra, somos o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra que organiza a Bienal de Coimbra. E esta pequena subtileza é, para nós, fundamental, porque senão a Bienal fica uma coisa sem paternidade.

DP: Por isso é que resistimos a uma questão tão simples como haver uma corporização da Bienal em termos jurídicos, porque queremos que ela se mantenha integrada no Círculo. A sua génese é o Círculo e entendemos que não deve ter estatuto jurídico, senão autonomiza-se.

CA: Isso não faz sentido porque a Bienal é, antes de mais, a resposta do Círculo de Artes Plásticas à nova condição da cidade de Coimbra enquanto Património da Humanidade.

DP: E é também o desafio que o Círculo fez aos seus habituais parceiros, a Universidade e a Câmara, no sentido de os envolver nas suas actividades de um modo mais intenso e com outra capacidade financeira, mostrando-lhes como a programação do Círculo tem o efeito catalisador de trazer muitas pessoas, é um investimento que vale a pena e tem retorno pela visibilidade que dá da cidade. Ao conseguirmos juntar os parceiros habituais neste evento, estamos a cimentar parcerias que já existem e que estão presentes na programação corrente do Círculo, como a “Semana da Arte” ou as exposições conjuntas com a Câmara. Há um trabalho que se tornou mais intenso através da Bienal, mas que passa para o Círculo.

CR: Além da Bienal, que abre novas linhas de actuação ao Círculo, a vossa direcção parece pautada também pela organização e fixação da memória e do património do Círculo, dando-lhe uma existência pública. Sei que têm estado a organizar o arquivo e a inventariar o espólio artístico do CAPC. Como tem decorrido esse trabalho, quais os seus objectivos e que resultados têm tido?

CA:  O que recebemos foi um conjunto de documentos, que foram sendo conservados e guardados na Biblioteca do Círculo. Mas não era sequer um arquivo organizado. Eram coisas que iam ficando, pastas que estavam bem guardadas mas que não se constituíam como uma base de pensamento. O mesmo acontecia com as obras de arte, que iam ficando ou por depósito dos artistas ou por esquecimento. Hoje, continuamos a debater-nos com o problema de não ser por vezes claro que algumas obras sejam nossas. Neste aspecto, estamos a tentar clarificar a propriedade junto dos artistas, pois não podemos dizer que temos um acervo se as obras não são nossas. Na sequência disso, temos vindo a elaborar as necessárias declarações de doação, ou de venda, ou o que for, para que as obras à nossa guarda se possam ir constituindo como um acervo legalmente pertencendo ao Círculo de Artes Plásticas. Por vezes isso acontece quase por inerência, porque algumas coisas estão aqui há quase quarenta anos, mas poderão não ser de facto do Círculo de Artes Plásticas. Já nos têm acontecido situações menos simpáticas que temos sabido resolver serena e civilizadamente com os artistas. O que estamos a fazer é um processo difícil e demorado.

CR: Quantas obras constituem o acervo?

CA: Cerca de 200 obras. Outra coisa que fizemos foi fotografar em condições todas as obras e iniciar o processo de as disponibilizar online, no nosso site. Todo esse processo de arquivo, no sentido clássico, estamos a fazê-lo. Tivemos uma estagiária, durante um ano, que fez o trabalho muito inicial de começar a organizar toda a documentação. É um processo muito lento, mas que não temos deixado cair um momento que seja. Temos uma colaboradora do Círculo que está a inventariar os livros da Biblioteca de forma sistemática, numa base de dados que nem sequer existia. Os livros, as obras e os documentos iam ficando depositados, guardados até com algum cuidado, mas esta organização, este nexo que agora se está a criar, não existia.

DP: Pedimos apoio financeiro à Fundação Calouste Gulbenkian, mas não conseguimos obtê-lo, para esta descoberta que fizemos: um acervo extraordinário de negativos e de diapositivos, sobretudo de 1973 a 1980, que já foi digitalizado em grande parte, mas que precisa do trabalho de um investigador. Nós documentamos, mas agora é preciso que entrem os investigadores e nós não temos essa capacidade financeira. O nosso desejo é tornar esta documentação acessível de forma a que os investigadores interessados possam trabalhar estas matérias. Os registos estão feitos, a inventariação precisa agora do apoio de investigadores.

CR: Qual é o legado do Círculo de Artes Plásticas às artes visuais?

CA: Há uma coisa que para mim é evidente. Não gosto da ideia de resistência, é uma ideia que me é pouco querida, porque acho que se confunde com reaccionarismo de uma maneira muito rápida. Gosto mais da ideia de dádiva, e acho que o Círculo sempre cumpriu esse lugar de dar ao mundo e à cidade coisas que eram improváveis.

A dádiva é uma forma sublime de resistência e é a única forma de resistência que me interessa, a resistência da dádiva.

“E se não fossemos por aqui e fossemos antes por ali?” Não é um processo de resistência, é dar mais uma alternativa. O Círculo sempre permitiu isso e o seu desconserto é um pouco esse, associado a uma pequena mas relevante e transformadora diferença, que é o Círculo nunca ter sido uma galeria de arte, nem nunca o ter querido ser, mas antes um lugar de produção de arte, por aquilo que a arte implica e exige, em particular hoje, no mundo, em que o mercado da arte ocupa uma parte de leão do próprio processo de criação artística. Se é certo que muitas vezes a arte está condenada a ficar pendurada em casa de gente rica como troféus de caça, o que motiva os artistas do Círculo de Artes Plásticas a trabalharem connosco nunca foi a dimensão comercial, desde logo porque aqui as obras não se vendem. Muitos artistas dizem com frequência que o prazer de trabalhar no Círculo de Artes Plásticas está na liberdade de não se preocuparem com a pressão das vendas que por vezes existe nas galerias. A total ausência dessa possibilidade cria nos artistas uma espécie de abnegação que lhes permite ter aqui experiências marcantes. Isto não sou eu que digo, são sucessivos relatos de artistas, que consideram que as suas colaborações com o Círculo foram transformadoras na sua relação com o mundo e com a arte, precisamente porque aqui podem criar outra relação com o processo criativo. Acho que isto cria, obviamente, uma história e um legado.

 

CAPC

Catarina Rosendo (Lisboa, 1972) Historiadora da arte. Investigadora Integrada do Instituto de História da Arte (FCSH-UNL). Desenvolveu, entre 2014 e 2017, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea (Almada). Co-autora do filme sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar (2008). Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio [ex aequo] da Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 (2007). Actualmente, lecciona no Mestrado em Estudos Curatoriais no Colégio das Artes – Universidade de Coimbra.

 

A autora não segue o novo acordo ortográfico. 

 

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