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Três perguntas a Eduardo Batarda

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Eduardo Batarda, vista da exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC
Isabel Carlos

Entre os dias 9 e 13 de Outubro, trocámos estas palavras por email, pelo meio houve algumas emendas, poucas, clarificações e telefonemas. No dia 19 de Outubro, encontrámo-nos, lemos em conjunto e tomámos e decisão de enviar para a Contemporânea.

Em Santiago de Compostela no Centro Galego de Arte Contemporânea pode ver-se agora simultaneamente uma parte da tua mais recente série Misquoteros em simultâneo com Mise en Abyme, a pequena antológica da tua obra mostrada no Pavilhão Branco em Lisboa [em 2016], organizada pelo Julião Sarmento. 

Da referência a Picasso que o título Misquoteros contém, até ao olhar de outro artista teu contemporâneo sobre a tua obra, como é que encaras esta junção ou cruzamento? 

A minha série Misquoteros está exposta em Santiago de Compostela [CGAC] na totalidade (trinta pinturas, cada uma com 132 x 98cm). Não posso em absoluto dizer que seja a "série mais recente", visto que já terminei duas sequências de oito Descrições de Imagens (a primeira das duas esteve exposta de Junho a Setembro de 2017 na Galeria Pedro Oliveira, no Porto; a segunda será exposta em Lisboa, na Galeria Miguel Nabinho, possivelmente em Janeiro de 2018). As  Descrições de Imagens empregam uma linguagem que prolonga, muito deliberadamente, a que eu usei nos Misquoteros. Isto não impede, no entanto, que a segunda sequência conte com algumas injecções de "figuração". Esta aparece sobreposta (redundantemente?) aos textos, ou então misturada com eles — e pode ainda funcionar como marginalia, sabotando ou complementando o texto "principal".

Por coincidência, há um facto menos agradável na minha recente vida privada, que pode fazer com que os Misquoteros possam ser entendidos como uma espécie de self-fulfilling prophecy por todos aqueles que encaram as obras de arte como projecções da intimidade ou da personalidade dos autores. O tal facto, no entanto, previsível como tudo neste mundo, aconteceu já muito depois da exposição.

Admito que, no planear da série ou nos respectivos processos de escrita, possa ter incluído uma certa quantidade de ingredientes, de memórias, e de elementos pessoais. Desde o princípio que o tom e a linguagem são "meus", mesmo sabendo que foram retirados do "mundo real" da vulgaridade, ou quando não fazem senão citar lugares-comuns.

Como é evidente, seria difícil e talvez irrealizável abordar os temas (ou pseudo-temas?) dos estilos tardios, da decadência, do desgaste, mais os do isolamento, da incompreensão e do desprezo — unicamente a partir dos clichés e das banalidades que eles à partida constituem. [Inversamente, é impossível pensar nessas coisas sem ter em conta a ganga de lugares-comuns que são em grande parte a história do tema.]

A circunstância de estar a planear fazer arte sobre a arte (uma situação que não está muito longe do que eu sempre fiz: imagens feitas sobre ou a partir de outras imagens) forneceu-me, para a exposição, um conjunto de textos quase infinito. É claro que tive que proceder a escolhas, entre as quais as mais imediatas e urgentes foram a exclusão dos textos promocionais ou críticos supostamente especializados, "contemporâneos" ou actuais, do género dos que usam como suporte os trade magazines, ou os catálogos de exposições. À partida, também, era de não contar com a prosa mais baixa que foca ou analisa a produção artística, eliminando assim revistas e jornais de grande difusão. No ponto mais alto da escala, era evidente que não poderia incluir qualquer espécie de livro, manual, ou catálogo — ou qualquer coisa merecedora da chamada respeitabilidade académica, incluindo as publicações periódicas que certas pessoas insistem em chamar "eruditas". Outras motivações punham fora da escolha a chamada "teoria", bem como a história da arte (também) academicamente aceitável. Tinha de haver, apesar de tudo, um mínimo de inteligibilidade para “o meio".

As soluções apareciam, muito evidentes — eram elas as revistas de grande difusão sim, mas especializadas em coisas "educadas", eventualmente consideradas "bem-pensantes" (a este respeito o João Fernandes escreveu que eu estaria a exercer uma espécie de risonho castigo de costumes, quase no género “bas les masques — não era exactamente o caso), e que chamam ou contam com "especialistas" mais ou menos habituais para lidar com as artes visuais de forma  informada e civilizada. Depois do parti-pris da banalidade, uma escolha resultava facílima, entre o Times Literary Supplement, a London Review of Books e a New York Review of Books. Ganhou a terceira.

Por outro lado, e estando em causa o chamado estilo tardio, era inevitável que o nome do Picasso aparecesse, e que aparecesse como referência principal. Do texto com que eu introduzia e apresentava (“explicava”) a exposição, decorria claramente que tinham sido utilizados alguns dos muitos textos que partiram da obra dele, média e/ou da pós-maturidade, para discutir o estilo dito tardio, a senilidade, e as suas condições e efeitos. Aqueles tinham sido utilizados por mim directamente, ou pelos autores cujas micro-citações eu pirateava — ou pelos outros autores que eles citavam.

Sem o trocadilho do título, no entanto, o Picasso dos últimos anos poderia não ter tido a posição central "de referência" que as pessoas pelos vistos lhe foram encontrar nos Misquoteros.

Pode dizer-se, então, que a referência não é necessariamente ao Picasso, mas que ele é o nome sobre o qual falam os autores que eu "cito" quando falam de velhos (ou seja, de mim) — e simultaneamente o autor da "série" Mosqueteros, com a qual eu, em sucessivas misquotes, construo os meus Misquoteros. Os temas do artigo [por Martin Filler] de onde retirei mais frases ou conjuntos são, precisamente, a série Mosqueteros e o seu regresso ao mercado da arte, bem como a sua fortuna critica.

[Setenta das 646 linhas de Misquoteros incluem apropriações; e aproximadamente 5,3% das 3.828 palavras são “roubadas”.

[Entretanto, a série tanto tinha a ver com as interpretações em torno do late style como tinha a ver com a nossa capacidade, com o nosso dever de falar claramente, e de escolher para cada circunstância as palavras certas.

[Para isso, embarquei numa sucessão de ficções, encadeadas ad libitum, usando sistematicamente metáforas vulgares e frases aparentemente irrelevantes, quando não absurdas. Faz sentido?]

Quando em (fins de?) 2014 o Julião Sarmento encetou os contactos para o que viria a ser a exposição Mise en Abyme — contactos comigo, com a EGEAC [que gere o Pavilhão Branco], etc. —, creio que eu nem estava ainda a pintar os Misquoteros. Mas estava já a escrevê-los havia algum tempo. 

O interesse e os motivos do Julião pouco têm a ver com aquilo a que chamas a minha "referência" ao Picasso. Por outras palavras: a minha intenção não era ajudar o Picasso, se bem que nada me motivasse para o prejudicar. 

Desde o começo do projecto que o Julião quis duas coisas: organizar, como curador, uma exposição minha que lhe deixasse melhor impressão do que as minhas exposições que ele já tinha visto; e dar visibilidade a um artista (foi o que ele escreveu) com reputação não especialmente positiva, e que ele achava merecedor de mais ou de melhor atenção. O Julião Sarmento tem tido intensa actividade como curador, e nada havia aqui de estranho. 

Admito que talvez eu tenha tido um ou dois segundos de embaraço — mas era difícil armar-me em modesto e deitar fora a oportunidade.

Houve quem disputasse ou contestasse os dois postulados do Julião — Mise en Abyme, como exposição "do meu trabalho", seria apenas "mais uma”, e nada de especial; e, assim como assim, eu até já teria em tempos merecido alguma atenção “crítica”. Não sei. Penso que se tratou de uma atitude muito generosa e muito rara, e penso também que foi completamente desinteressada. As pessoas gostaram da exposição, que resultou límpida e desafogada. Quando abri os Misquoteros na EDP [8 de Novembro de 2016] não faltou quem viesse dizer "… mas gostei mais da outra". 

É possível que a Mise en Abyme, que tinha mesmo alguns inéditos (entre os quais duas das peças dos Misquoteros, em representação dos anos de trabalho 2015 e 2016), pudesse agora, em Santiago, ter sido acrescentada com quatro ou cinco peças mais — para ser um pouco mais informativa (o Julião Sarmento, em Lisboa, tinha achado que não valia a pena incluir trabalho meu dos anos setenta, "porque toda a gente o conhece". A citação é aproximada).

A resposta, então, poderia não contemplar nem junções nem cruzamentos: o velho Eduardo Batarda, em 2014/2015, usa os nomes do Pablo Picasso e dos seus Mosqueteros, e apenas os refere duas ou três vezes na sua introdução ao catálogo de 2016; escreve textos que usam comentários e notícias históricas sobre o Picasso e outros longevos ou solitários: o Julião Sarmento, mais novo cinco anos do que Eduardo Batarda, decide dar alguma visibilidade a um oficial do mesmo ofício (?) mais ou menos caído em desgraça. E este agradece, e de que maneira. É coisa que não vemos suceder muitas vezes. 

No momento em que escrevo, é ele mesmo quem está em Santiago a montar a minha exposição. Eu não posso lá estar. Que dizer?

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Eduardo Batarda, vista da exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC.

Escrever e pintar são práticas que sempre estiveram presentes na tua obra. Na série Misquoteros levas isso ao extremo: pintas letras e frases. Muitas, mais precisamente 646 frases.  

Rigor, erudição, regras apertadas, uma espécie de matemática pictórica que baralhas e voltas a dar, uma complexificação, senão mesmo uma complicação, que infliges a ti próprio como se necessitasses de domar o desejo, o impulso e a sensualidade do acto de pintar, como se permanentemente quisesses criar um dicionário, uma enciclopédia de formas e cores?

Se a primeira afirmação quisesse dizer “que eu pinto e escrevo” (ou seja, que manufacturo peças a que se chama quadros, e que sou também e ao mesmo tempo, assim, à la Witkiewicz, autor de textos eventualmente publicados ou editados) seria preciso lembrar que a segunda por-assim-dizer actividade foi ocasional, que foi muito rara, e que teve muito pouca substância (uns artigos, uns catálogos, uma conferência, e quase nada mais). Escrevo como escreve qualquer alfabetizado, e há mesmo assim quem pense que eu nem isso chego a ser.

Se, por outro lado, se trata de uma referência à presença de letras, palavras, frases e textos nas minhas pinturas, então temos de recordar que essas coisas me têm sucedido (ou que eu tenho feito coisas dessas) desde que sou pintor.

Os textos nos quadros dos Misquoteros e das séries seguintes não foram escritos com outra intenção do que a de pertencer/aparecer em pinturas. A sua ambição ensaística é nula, e a sua “qualidade” literária inexistente. Como é óbvio, destinam-se a ser lidos, e não pretendo que funcionem “apenas” como elementos compositivos ou como ingredientes formais.

Nas artes visuais há uma infinidade de obras que utilizam o texto sem mais acrescentos, e essa infinidade inclui muitas e muitas pinturas. Nada de especial, portanto.

Para responder mais, tenho que lembrar que basta ver os quadros para verificar que as superfícies, que são o que se costuma chamar “superfícies pictóricas”, estão  animadas (se assim  me posso exprimir) por aquilo que funciona como um sistema que regulariza e normaliza os conjuntos – para além dos letterings e dos textos, ou da numeração das frases: falo de imagens com figura e fundo, garantindo a presença de duas cores ou tonalidades da mesma cor, ou de três ou mesmo quatro, em raros casos.

As formas, ou melhor, as delimitações dessas figuras e desses fundos são inventadas durante um processo que é um processo de pintura. Não se pode dizer que sejam formas improvisadas, já que quase todas são comentários ao rectângulo ou à moldura, ou variações sobre esses comentários, e todas têm por objectivo a integração num elenco de formas aparentadas.

Mas a tal invenção pressupõe, por vezes, vários dias de trabalho, e o processo nunca envolve desenho prévio ou computador. O método é o da tentativa-erro-tentativa, conhecido nas escolas como “tentativa e erro”.

Estes fundos com figura-fundo, com duas ou mais cores, são hipotéticos quadros acabados (Uma fase anterior, que era o braço armado — e o mais simpático — da série Bicos, de 2009-2010, deixava as coisas por aqui). O mesmo sucedia com uma parte dos pequenos quadros das duas séries Thumbnails e Modelos, de 2012 e 2013.

Mas complicar não custa nada. Daí que estes hipotéticos quadros acabados sejam os suportes de outros quadros acabados — ou não acabados —, nos quais os textos lhes são aplicados.

As letras não são uma complicação, na verdade. São simplesmente mais uma sobreposição. É inevitável que isso resulte numa certa “complexificação” em termos visuais.

Há, logo à partida, vários níveis físicos de sobreposição/cancelamento, e momentos separados no tempo na aplicação das camadas. Se isto suscita implicações espaciais, é muitíssimo possível (é claro que suscita), mas interessa-me pouco.

Quanto ao “rigor”, ele é, como na engenharia e na arquitectura, uma coisa na qual se fala e que existe se houver um bocado de sorte. (Nunca se sabe muito bem o que quer dizer: “rigor”, em relação a quê?) No entanto, como não tenho assistentes, sou eu que tenho de zelar por tudo, para que as letras caibam (ou pelo menos para conseguir quebrar as palavras nos sítios certos, cada vez que as linhas “não cabem”), para que sejam legíveis, e para que não se tornem tonitruantes nem esganiçadas.

O tal rigor é bem pobre, e fiquei em grande paz comigo próprio quando respeitadíssimos designers gráficos, mais do que dois ou três deles, me disseram gostar ou gostar muito dos quadros. Estes, entretanto, são uma espécie de enciclopédia do que não se deve fazer quando desenhamos letra ou quando organizamos textos.

Este anti-rigor, sendo ou podendo parecer semi-ingénuo, nunca é, creio eu, nem arrogante nem pretensamente sofisticado, no assumir que inevitavelmente ficarão por cumprir todas as regras “profissionais”. Falo das que pertenceriam às actividades de designer gráfico, desenhador de letras, preparador e planeador de textos públicos, decorador de interiores, redactor, etc.

Posso então dizer que há um rigor feito de ingenuidade — precisamente, ingénuo pour de bon. Um amigo inglês brincava comigo precisamente sobre a qualidade do lettering dos Misquoteros: come on, it’s definitely naffy, dizia ele. Em minha defesa, e enquanto lhe chamava a atenção para o facto de que as letras para os quadros jamais poderiam ser “profissionais” e muito menos poderiam ser “bem feitas”, respondi-lhe o que é rigorosamente verdade: são o melhor de que eu sou capaz. (Ou então cada pintura demorava um ano a acabar.)

Esquisitamente, já houve duas ou três pessoas que me disseram, em tom elogioso e enlevado: “…… tudo tão bem feito, até parece que foram feitas a computador ……” Claro que, uma vez compreendida a frase, teríamos que ir ver os computadores deles. Ou saber se são gente falsa, ou com pouco assunto, ou se estão simplesmente a fazer troça de mim.

Resumindo: podemos falar em rigor quando existe um projecto lúcido, a servir de forma excelente um propósito ou uma função; quando a imagem desse projecto é clara e corresponde à ideia que o autor quis interpretar desde o começo; quando todos os passos da realização/execução foram planeados, e quando são cumpridos; o “rigor” dos meus trabalhos não é esse, e para dizer mais um lugar comum, ele é descoberto no fim do trabalho, quando dizemos “caramba, era isto”, e “olha, está pronto”. Nas pinturas dos Misquoteros e séries que fiz a seguir, não há matemáticas — a não ser na numeração (aritmética), e nunca as há na escrita: aí, estive ocupado com centenas ou milhares de possíveis combinações, e estas ocuparam-me durante meses e meses e meses, antes de começar as pinturas e enquanto as fazia, até conseguir, com todo o rigor, a aleivosia ou a idiotice perfeitas.

“Regras apertadas”, houve apenas uma: a que limitava o número de caracteres por cada linha. E admito que só a inventei para preservar a minha paz de espírito quando olhava para o écran do computador.

Entretanto, parece que vou ter de me haver com a sensualidade do acto de pintar. Começo por notar que letras ou frases pintadas têm grandes semelhanças com letras ou frases manuscritas, projectadas, imaginadas, impressas, coladas, recortadas, gravadas, ou desenhadas. Arrisco dizer que a única coisa que as diferencia das outras é o facto de terem sido (ou de estarem a ser) pintadas — e, eventualmente, o de não serem tão “bem feitas”. Ou será que, precisamente por serem pintadas num quadro, as pessoas vão dizer que elas não são letras, mas sim que tentam representar letras? [Resposta: em qualquer suporte, a representação de uma letra é uma letra. E, por uma vez, podemos dizer: O trompe l’œil perfeito.]

Se estamos então a falar do acto de pintar (letras), ou seja da execução em pintura (de letras), podemos pôr duas hipóteses. Serão elas a pintura directa (desenhar — ou não desenhar, e cá vai disto) ou então indirecta (com uso ou auxílio de escantilhões, stencils ou reservas). A minha abordagem é sempre a primeira — a pintura directa. Essencialmente, é preciso cobrir as mesmas formas umas três vezes, ou mais ainda, se queremos que se destaquem e se tornem legíveis. Isto acontece — pelo menos comigo — cada vez que eu pinto  letras — ou de cada vez que pinto seja o que for (as tintas acrílicas cobrem pouco). Por exemplo o fundo por baixo das (isto é: por fora ou em redor  das) ditas letras.

Ouvi dizer coisas boas e coisas más sobre o desejo, e em geral coisas desagradáveis sobre os impulsos, principalmente quando menos nobres. E não sei muito bem que coisa é que é a sensualidade. Talvez por isso, parece-me que nunca tive qualquer informação sobre a sensualidade do acto pictórico. E é também por isso que me custa muito dizer se estou ou não a domar seja o que for, algum animal imprevisível cá dentro, ou alguma metáfora que saltou a cerca. Sou muito sossegado, e se calhar é isso: “este gajo há-de estar ali a domar alguma”.

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Eduardo Batarda, vista da exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC.

 

Como muitas outras vezes, puseste-me com a tua resposta a dar uma enorme gargalhada, ou no mínimo, para ser mais comedida, puseste-me com um sorriso bem rasgado.  

Gostava agora que escrevesses como é que a pintura se impôs na tua vida, sabemos que primeiro estudaste Medicina e só depois decidiste mudar para Belas-Artes, deixaste o corpo doente e voltaste-te para a tela?

Esta é biográfica (“deixei o corpo doente?”) e não interessa a ninguém, e por isso tento ser breve: Coimbra, 1960-1963, ainda tinha dezasseis anos quando entrei para a Faculdade (faço anos no fim de Outubro). A ideia era vir a ser lente, que era uma coisa mais ou menos hereditária. Fiz três cadeiras do primeiro ano em 1960-1961. Durante esse ano e a partir dele, sem ordem especial: Associação Académica, Assembleias Gerais, Prévert, El Greco, crises e conflitos, Guillaume Apollinaire, esquerda e direita estudantis, os Brandeburgueses (isso mesmo …), confrontos escaldantes, poetas da treta, Giorgio de Chirico, o André Francis todo de cor (desde 1958, crise académica de 1962, Via Latina (direcção gráfica), composição manual, Le Modern Jazz Quartet, Tipografia Atlântida, García Lorca, Dix, Sena, Gleizes, tudo em reproduções, secção de Jazz, TEUC, desmonta o palco, Ernst, monta os cenários, Huxley, Céline, Bach-o-filho-ainda-era-melhor (qual deles? bla-bla-bla), figurinos, Gil-gaita-Vicente, Rimbaud-Verlaine, Sviatoslav Richter, Matisse Matisse Matisse, Livraria Moura Marques, cerveja, Victor Brauner, conversa conversa conversa, make-up, figuração inteligente, Kerouac, Mad Magazine, Buñuel-no-papel, Dias do Estudante, equipas de cena, Tirez S. le P., Futurballa, Miles Davis, Benozzo Gozzoli, André Malraux, Patricia Highsmith, Ray Charles, CITAC, Dada, cenários e montagens, Jazz Hot, Sociedade (ou era Confraria?) dos Pequenos Prazeres, La Ragazza con la Valigia, adereços, paleio e mais paleio, Bruegel-Breughel, John Lee Hooker, Nadeau, um pequeno papel contracenando com…, papier-maché, cerveja da fábrica, François Truffaut, livros emprestados, meias doses e combinados, capa-e-batina-nunca, Plein Soleil, Georges Braque, Margie Hendricks, Manteca, Cineclube, cinco partes de Topázio para uma de Onyx, não faltar aos ensaios, Casque d’Or, Bar de Letras, Thelonius Monk, John Coltrane,Thelonius Monk with John Coltrane, Praça da República, DG, faltas aos exames, Bosch, polícia de choque, anchovas, Lester Young, Les Cahiers du Cinéma, Raymond Queneau, pernas e bambolinas, Elizabeth Schwarzkopf, Rádio Moscovo ai-ai-ai, Eddie Constantine, T. S. Eliot, falta-me a Anatomia, Archiv, Michelangelo A., Dietrich Fischer-Dieskau, Ezra Pound, tournées em autocarro, Boris Vian, NRF, Abrams Books, El Museo Nacional del Prado (com extra-textos e muito preto e branco), Avanti Popolo, eu a fazer bonecos, Le Grand Art en Livres de Poche, Luchino V., Jazz Magazine, surrealistas contra neo-realistas, Joseph Losey, decadentismo burguês, Ésquilo, Bogart-Bacall, Miller (dec. burg.),… que vívan los estudiantes oh-oh, y las masas populares, Horace Silver, começar a roer o Proust, postais do Piero della Francesca, beatnicks contra squares, Roger Vailland, Sonny Rollins, name dropping nos cafés até às tantas, álcool, Don Cherry, Les Éditions du Seuil, Herberto Hélder, Ubu Roi, Pollock, Biblioteca Geral, George Grosz, Les Liaisons Dangereuses, I Soliti Ignoti, Borges, Stella Stevens, estudos do antigo sétimo (para mudar para História), Trotsky-Rivera-Breton, Billie Holiday, cinema cinema cinema, o meu amigo vai ter que passar lá na Antero de Quental, passeios na praia ao luar, Skira, Jill St. John, dez a Grego, românticos que horror – com todas as excepções, Les Éditions de Minuit, Lino Ventura, empresta-livros, mais bonecadas, André Breton outra vez, casaco de couro preto, Bibliothèque de la Pléiade (o Balzac), Kim Novak, amigos amigos, Zazie Dans le Métro, expulsões, sexo nem vê-lo, compagnons de route, ler até cair, nunca roubei um livro, Faber and Faber, Bird Lives!, Le Livre de Poche, L’Herne, isso-é-que-era-bom, 10/18, o gajo é mas é da PIDE, Under the Volcano, sulfato de ß-fenil-isopropilamina (para fazer directas a “estudar”), Pratolini-Pavese- Vittorini-Calvino e tudo em tradução, Penguin/Pelican Books, bonecos, L’Express, Gallimard, aprender com os amigos, Vernon Sullivan, Brahms Brahms Brahms, Angie Dickinson, ir para a cama às cinco, le Nouveau Roman, empresta-discos, The Amazing Bud Powell, Raymond Chandler, adolescência tardia, etc., etc., etc., estão a ver a coisa, and I think I’ve made myself clear. Cheios de vergonha, os meus pais dizem-me que tenho de ir para fora de Coimbra.

Para que curso é que queriam que eu tivesse ido?

No Verão de 1963 inscrevi-me e fiz o exame de admissão às Belas-Artes de Lisboa. Era como se fosse um veterano. Ainda não tinha vinte anos, nunca tinha tocado num pincel a não ser nos de aguarela, e uns dias antes das provas, que eram um desenho de estátua (gesso, carvão) e mais nada, um senhor contínuo deu-me para a mão os cartões de visita de uns mestres que nos preparavam. Com cinco dias de prática intensa e desidratante em águas-furtadas debaixo do sol de Julho, com dois mestres diferentes, sentei-me no exame, entre a Ana Jotta e o Gaëtan. Fomos os três admitidos.

 

Eduardo Batarda, exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC
Eduardo Batarda, exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC

Isabel Carlos

Licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese «Performance ou a Arte num Lugar Incómodo» (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura. Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Arts Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou, destacam-se: Bienal de Sidney «On Reason and Emotion» (2004), «Intus» de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), «Provisions for the Future», Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

 

Eduardo Batarda

CGAC – Centro Galego de Arte Contemporánea

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Eduardo Batarda, vista da exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC
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Eduardo Batarda, vista da exposição Mise en abyme. CGAC-Centro Galego de Arte Contemporánea. Cortesia do artista e CGAC
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