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Um Realismo Necessário

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Susana Ventura

Ensaios sobre o Corpo

A exposição Um Realismo Necessário, patente no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, com a curadoria de Nuno Crespo, apresenta um conjunto de fotografias e um vídeo de José Pedro Cortes, produzidos entre 2005 e 2018, a partir de um tema que atravessa, recorrentemente, a obra deste artista: o corpo e as suas infinitas variações.

 

I

Sob a Pele

Na sua origem, acreditou-se que a lente mecânica da câmara fotográfica produzia reproduções (em detrimento de representações) verosímeis do mundo, donde o carácter histórico e documental atribuído às primeiras fotografias e o interesse científico fomentado pela possibilidade de ampliação da realidade. Nas ampliações, descobriram-se as mais belas analogias entre arte e natureza. Nas flores de Blossfeldt, surgiram linhas de colunas clássicas e de arcos góticos, conduzindo Walter Benjamin a reconhecer a existência de um inconsciente óptico do tecido do existente, que escapa ao olhar humano e que apenas a câmara fotográfica consegue capturar e revelar, atribuindo à fotografia um valor mágico. Como algo que a assombra, também, a realidade é-nos dada a ver na superfície fotográfica como sendo outra, na qual descobrimos não só analogias ou semelhanças entre formas díspares, como nos descobrimos a nós na nossa relação com o mundo, aparentemente, tangível. No corredor de acesso à exposição de Cortes, somos recebidos por duas fotografias que, curiosamente, parecem advir desse tempo longínquo das primeiras fotografias, da aparição de um inconsciente óptico e do silêncio enigmático de um rosto que nos contempla (enganamo-nos se pensarmos que somos a nós que o contemplamos), acordando o espanto: que realidade ou que mundo é este que nos assombra? E o “necessário” pertencerá, também, a esta categoria, à urgência de questionarmos tanto o mundo que nos rodeia, como as  imagens que nos devolve esse mundo através do olhar subjectivo do fotógrafo. Inevitavelmente, na primeira imagem Lap and Nails (2018), onde observamos um mão de mulher por entre as suas pernas, no momento em que a sua saia (ou vestido) sobe e mostra a carne rúbea da coxa, revemos, na nossa imaginação uma obra de arte do realismo L'Origine du monde (1866), de Gustave Courbet, colocando-nos, afinal, noutro intervalo, mais espesso ainda, o da própria História da Arte (e, ao entrarmos, na primeira sala, confirmamos esta intuição com Broken Flowers, de 2008). E nesse realismo, encontraremos um outro sentido (ainda que igualmente proveniente desta travessia pela História da Arte).

O corpo é, primeiramente, representado pela carne e pelo rosto e, então, percebemos que sob a pele existe um mundo efervescente que aflora à superfície como uma impressão num vidro embaciado, uma paisagem sensível, rúbea e suavemente ondulante, que dobra e desaparece no instante que a fixou. Nesta paisagem, poderão alguns compreender o erotismo da carne nua e o calor da pele, ou simplesmente o fragmento imperceptível de um movimento de uma mulher que espera sentada. Muitas fotografias de Cortes de pormenores do corpo humano adquirem este sentido duplo e ambíguo: entre um interesse pela anatomia e as analogias que esta desperta (o corpo torna-se escultura; em que alguns pormenores se assemelham, inclusive, a esculturas renascentistas, quando o corpo é esculpido ou capturado no momento em que os músculos se encontram em tensão) e a aparição à superfície do corpo sensível que muda as suas cores internas (sabemo-lo pela ciência, também) pelo prazer ou desejo. Em Ombro (2006), o ombro imobilizado na superfície fotográfica aparece-nos, sob a luz, na sua virtuosidade de fazer rodar um braço (e abraçar a solidão? quando o braço se esconde entre as pernas e não se vê o rosto deste corpo). Em TJ VI (2016), o torso do amante, no momento preciso em que este se vira para a mulher, cobrindo-a, a luz revela as suas costelas e as sombras desenham nos músculos o impulso nervoso do desejo. Ao mesmo tempo, o torso deste homem aparece-nos como um deserto, o corpo como uma paisagem vasta e abstracta, pontuada por dunas suaves que a luz vai desenhando. E sente-se o calor e a tensão dos corpos.

Nos retratos, como naquele que nos olha ao longe do fundo do corredor (E., 2016) ou o de Cecilia (2005), notamos, igualmente, a emersão à superfície de algo que se oculta debaixo da pele. Não sabemos se poderá a alma ser capturada numa imagem fotográfica, mas nos rostos destas mulheres, quase sempre fixos na superfície com uma luz mais plana e fria, procurando, talvez, uma dessubjectivação do rosto, contemplamos uma doçura vital, procurando os enigmas que escondem. Sentir empatia por um rosto estranho é, também, resgatar a impessoalidade da vida em si,  independentemente de mim, de ti, desse rosto que nos devolve o olhar. É extraordinária, aliás, neste sentido, a visão que se tem nas salas de exposição da sequência de TJ VJ, Cecilia (2005) e Joana (2016) e, ao meio, já na sala seguinte, através do vazio da porta deixada aberta, Ombro.

 

II

Movimento e Gesto

Se algumas fotografias detêm o nosso olhar na carne, na pele, no silêncio (as mãos de Cecilia, ainda que se pressinta alguma tensão, encontram no instante o silêncio), na fisionomia do rosto e no que estes revelam na superfície sensível da fotografia, existem outras que representam o corpo a partir dos seus gestos quotidianos, banais, que, no entanto, despertam a nossa imaginação para experiências idênticas, relacionando-se com outras imagens quer do nosso imaginário, quer de outras obras (como em Driving on the Bridge, 2016), ou soltando desses gestos comuns a dimensão poética oculta na realidade ou a beleza no ordinário, como em Hands (2016) ou em Nail Performance (2016), cuja coreografia das mãos ultrapassa a imperfeição do acto em si. Outras ainda revelam os limites do corpo ou a própria capacidade plástica que um corpo contém em si. Em Workout 7M (2018), ouvimos a respiração da mulher no ventre que a imagem recorta, no ritmo contracção-descontracção. E na sequência das quatro fotografias A. II, III, V, VIII (2014), onde vemos uma mulher ensaiar diferentes posições do seu corpo no espaço, observamos, novamente, os músculos em tensão e o corpo em esforço nas mais diversas posições, lembrando os corpos de Francis Bacon, cujas posições, ainda que parecessem ao observador, desconfortáveis ou estranhas, percebendo-se nas manchas de carne a contracção dos músculos — dizia - eram posições tão naturais quanto as que executamos no nosso quotidiano: como estar sentado à espera e efectuar, ao mesmo tempo, um outro movimento que, aparentemente, coloca o corpo em desequilíbrio.

Outros movimentos e gestos revelam momentos de repouso de um corpo ou de outros corpos. Em Treixedo (2010), tanto surge o corpo ginasta da grávida que alonga os seus braços, como o corpo do voyeur que fixa o olhar no infinito ou em qualquer movimento exterior à imagem, que, por sua vez, poderá ser tanto da ordem do trivial como da do sublime, enquanto outros se deleitam, simplesmente, com o calor que lhes cobre a face.

III

O Mundo

E, por fim, o corpo no mundo, ou o mundo onde o corpo está ausente e, no entanto, implícito, no ponto de fuga de um olhar que contempla a lua (Lua EUA, 2018), ou no próprio objecto da imagem como a fruta que se come fresca de Fresh Coconuts (2017), ou a visão que se tem de dentro de um carro a atravessar a cidade, ou ainda na memória inscrita nos objectos, como em Car Sculpture (2006), ou em MNAA (2014). Este par constrói, aliás, na exposição um diálogo significante: dois tempos distintos - o das figuras eclesiásticas que aparecem partidas, algumas sem cabeça, e o da exaltação da máquina, da velocidade, da modernidade, transformada em sucata - revelam a espessura do tempo e a constante transformação do mundo, que destrói todas as certezas adquiridas. A única coisa que se sabe é que tudo morrerá um dia. E, no entanto, há a resistência, na vida que aflora das condições mais agrestes e violentas, como na imagem da pequena erva que nasce da aridez e da secura (Lawn Weed, 2017).

Como surgem tempos distintos (que se distinguem das datas em que as fotografias foram realizadas, mesmo que, segundo José Pedro Cortes, os objectos, que muitas vezes fotografa, permitirão datar a imagem, muitos desses estabelecem relações e analogias com objectos ou obras de arte de outras épocas, ou mesmo de outros imaginários, colocando-nos, necessariamente, num espaço-tempo fictício, paralelo, esse da própria imagem, não obstante o seu vínculo à realidade), atravessamos, também, diferentes geografias, dirigindo-nos para um mundo plural, erradicando identidades e fronteiras, e transformando o plano da fotografia no plano actual, contemporâneo, onde todos pertencemos a mundo múltiplo. Este era, também, o primado do realismo: o olhar sobre o quotidiano e o comum pretendia evidenciar as questões sociais e políticas ignoradas pelo idealismo e pelo romantismo. As fotografias de Cortes mostram a diferença no mundo, que, para alguns olhares mais enraizados na cultura ocidental, podem revelar as imperfeições deste ou estranheza e, no entanto, é a fotografia enquanto forma de resistência (ao tempo, à forma, ao semelhante) que poderá, inclusivamente, constituir-se como visionária (a obra de arte não se limita ao realismo da sua época, incorporando sempre o por-vir): a aceitação de um mundo na sua diferença.

A sequência das fotografias no espaço é reveladora, uma vez mais. Se o corpo nos recebe, as restantes salas desvelam o mundo que esse corpo ocupa, um mundo composto de fragmentos, de destruição-construção (este par encontra a sua expressão mais evidente em Civilization e Vertical Gardens, ambas de 2015), de interioridade, de natureza, de lazer, de deleite, de desejo, em que a primeira sala poderá ser entendida como uma síntese da multiplicidade que atravessa a obra de Cortes; na segunda sala, encontramos o mundo exterior; na terceira, o mundo interior; na quarta, os objectos e as acções; regressando, por fim, ao corpo atlético, elástico, flexível e plástico e os seus limites. Mas, tanto no espaço, como na realidade, tudo se entrecruza e se insinua: não há oposições, não há entidades isoladas. Somos todos corpos disseminados.

José Pedro Cortes

MNAC—Museu do Chiado

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia/Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). 

 

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José Pedro Cortes. Vistas da exposição "Um realismo necessário". MNAC—Museu do Chiado. Cortesia do artista e MNAC.

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