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threedscans.com

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Susana Ventura

A obra de arte na era da sua reprodutibilidade digital

(depois de W. B.)

Transpondo a entrada da Galeria Pedro Cera, uma peça no centro da exposição threedscans.com de Oliver Laric (a primeira em Portugal deste artista austríaco), cativa, de imediato, o olhar. Trata-se de uma escultura intitulada Reclining Pan, de 2019, que atraiçoa a nossa memória mais sensível. A sua imagem é-nos familiar, assim como o retratado, o deus grego Pã, deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores, comummente representado com orelhas, chifres e pernas de bode, tronco, rosto, braços e mãos de homem, segurando uma flauta de pã. No entanto, as matérias, de que se compõe (e a reacção entre estas), revelam um brilho, uma fluidez, um movimento, uma transparência, por vezes, ou uma opacidade, por outras, da ordem do plástico, do artificial, da extrema leveza (que o seu suporte acentua, adivinhando-se o seu interior oco), das superfícies lisas perfeitas, nas quais doces néctares não encontrariam qualquer resistência, de algo que só pode ser criado, não pelas mãos do homem, mas por uma qualquer outra máquina, computador ou robô.

Em seu redor, perfazendo três planos distintos da sala, encontram-se três baixos-relevos que, a uma certa distância, se assemelham a tradicionais baixos-relevos em mármore. Contudo, uma vez mais, a sua superfície mostra uma outra matéria que, embora contendo na sua composição pó de mármore e de granito entre pigmentos e resina, se apresenta como algo informe (onde se percebem manchas vagas de variações de intensidade de um mesmo tom), artificial e, paradoxalmente, flexível, uma matéria que expande, alarga e desforma os gestos em relevo até ao limite que os torna ainda reconhecíveis na sua forma como fragmentos de corpos (sobretudo, mãos e pés). Esta plasticidade, movimento e flexibilidade evidenciam o aparente paradoxo, à semelhança da peça central, tanto entre forma e matéria, como entre dois tempos distintos, que surgem nestas peças como coexistentes: um passado que reactiva a nossa memória através de um olhar rememorativo e a conversão desse passado num presente cujos contornos são, ainda, híbridos e ambíguos, definindo, por conseguinte, um tempo virtual.

Por fim, no plano que encerra e circunscreve o espaço da sala, numa prateleira suspensa, estão três livros iguais para consulta, onde se lê que threedscans.com é um arquivo, iniciado por Oliver Laric em 2012, de modelos 3D descarregáveis, que podem ser utilizados de forma livre, sem quaisquer restrições impostas por direitos de autor. O livro apresenta alguns dos modelos digitalizados por Laric com o apoio de vários museus e colecções, assim como algumas das apropriações que o artista procura seguir e compilar, incluindo Reclining Pan, digitalizado a partir da peça original, que se encontra no Saint Louis Art Museum, atribuída a Francesco da Sangallo (c. 1535). Ao expor este livro completando o círculo implícito na exposição, mais do que revelar o método de Laric, afirma-se que o arquivo do artista é, essencialmente, a sua obra, uma obra em potência. E é neste momento que a obra se torna problemática, também.

Para Laric, a ideia de original e a sua crítica remontam à escultura clássica e pressupõem, desde a génese desta, igualmente, a ideia de cópia, tal como revela o título da sua exposição Kopienkritik, que esteve no Skulpturhalle Basel, em 2011. Kopienkritik é um termo definido por historiadores alemães, atribuído ao processo de analisar cópias das esculturas clássicas, sobretudo reproduções romanas das esculturas gregas, para possibilitar uma melhor compreensão dos originais perdidos. A prática da reprodução era, igualmente, comum na Grécia Antiga e, hoje, o que encontramos nos museus são, com raríssimas excepções, cópias, tanto helénicas, como romanas. Na referida exposição, Laric reorganizou as (cópias das) esculturas clássicas da colecção do museu, e sobre dois moldes de gesso, projectou uma versão do seu projecto-vídeo em construção contínua Versions, questionando as ideias de autenticidade, verdade, substância e original, a partir de um modelo de percepção que só poderá ser aquele contemporâneo, inseparável da proliferação de imagens e da velocidade da sua reprodução na world wide web (Versions poderá ser a versão contemporânea e híbrida do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e do Museu Imaginário de André Malraux). Os vários conjuntos, de esculturas que agrupou, exemplificavam tanto a variação (sempre semelhante) em torno de um tema, como a proliferação massiva de imagens que essa variação produz, injectando, ao mesmo tempo, nesse intervalo (entre variação e semelhança, entre original e cópia, ou entre-cópias) um pensamento crítico.

A obra de Laric não se limita, por isso, à produção de um comentário sobre a cópia, mas cria, a partir da cópia e, sobretudo, das propriedades e das qualidades que advêm da sua digitalização e reprodutibilidade, uma obra única e original.

São as características ou as qualidades estéticas, que encontramos e descrevemos anteriormente nas peças presentes na Galeria Pedro Cera, que distinguem as obras de Laric dos seus modelos. Poder-se-á, ainda, considerar que a obra de Laric — sobretudo a prática da digitalização 3D — insere a obra de arte (habitualmente, a escultura clássica que já é, por si, uma cópia) no espaço público que José Gil descreve: “A maior gratificação que pode receber um artista é saber que a sua obra entrou no espaço anónimo em que, transformando-se multiplamente, vai fazer nascer outras vozes, outras escritas, outros pensamentos. Ter a felicidade de saber que a sua obra deixou de ser sua, precisamente pelo seu imenso poder de devir-outra”. A criação de um arquivo de modelos 3D corresponde, exactamente, à criação deste espaço público, onde a obra de arte circula de forma livre e anónima, podendo sempre transformar-se noutra obra, devir-outra, como demonstra o livro da exposição.

Mais ainda, a reprodutibilidade digital proposta pelo arquivo de Laric atribui outro sentido aos conceitos introduzidos por Walter Benjamin no seu ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. Como anteviu Benjamin, aplicando-se a análise marxista às tendências de evolução da arte face à alteração das condições de produção, é possível eliminar “alguns conceitos tradicionais — como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e o secreto” (W. Benjamin), e fazer surgir conceitos novos em teoria da arte (à data do ensaio de Benjamin, decorrentes da reprodutibilidade técnica e da alteração do modelo de percepção que esta induziu), que se diferenciam “dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para a formulação de exigências revolucionárias em política de arte” (W. Benjamin). A obra de Laric, partindo, igualmente, de uma nova alteração no modelo de percepção, propõe, sem dúvida, uma revolução a partir da reprodutibilidade digital da obra de arte.

Oliver Laric

Galeria Pedro Cera

Susana Ventura (Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia/Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). 

 

 

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Fig.6

Imagens: Oliver Laric. Vistas gerais da exposição threedscans.com. Galeria Pedro Cera. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Galeria Pedro Cera. 

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