Andreia Santana: Rumble Strip
A exposição Rumble Strip de Andreia Santana & Tiago ângelo é composta por obras que transgridem a sua visualidade, trespassam a sonoridade e entram no corpo, fixando-se sempre para além dos seus limites, como coisa etérea. Olhar para aquelas linhas que vão golpeando o espaço atmosférico, é olhar para um intervalo entre o visual e a experiência sonora, ou melhor para o silêncio em potência que constitui alguns dos momentos mais marcantes da história da música. As esculturas de Andreia Santana contêm um desejo intenso de transformação, interrompendo a velocidade que nos conduz para o abismo, na nossa condição antropocénica. O intervalo operado por estas esculturas, no espaço e no tempo — na ausência de ação e musicalidade, e na forma como se posicionam em relação ao nosso olhar, colocam-nos em modo introspectivo, são uma experiência háptica, que nos toca o corpo, suspendendo-o.
A conversa que se segue, espaçada no tempo, foi realizada por e-mail, na sequência de duas visitas, primeiro à Artworks no Porto — a fábrica onde Andreia Santana desenvolveu o seu trabalho, no âmbito da residência artística No Entulho, e depois à exposição Rumble Strip no novo espaço da Artworks em Lisboa.
Hugo Canoilas (HC): Quando vi as peças pela primeira vez, ainda na fábrica, pareceu-me importante começar esta conversa contigo através do seu espaço negativo. Ao olhar para as linhas que formam as esculturas ocorreu-me que esse espaço negativo forma-se a partir de textos como Ponto, Linha, Plano; Do Espiritual na Arte e O Som Amarelo de Kandinsky, que julgo estarem alinhados com uma tradição histórica (da história da arte) que me formou e que é uma base que está a ser agora abanada em prol de uma reformulação artística e social.
Sabendo da tua referência a Cornelius Cardew, esta consideração estaria à partida errada, por isso queria talhar esse espaço negativo para chegar ao que estás a fazer (assim como o espaço negativo de uma cadeira de De Kooning deu depois origem à obra do Bruce Nauman). Tendo em conta o hiato geracional entre nós, gostaria de perceber melhor qual o princípio criador destas peças.
Andreia Santana (AS): O espaço negativo que observaste, na primeira abordagem ao meu trabalho, e que consequentemente te fez referir Ponto, Linha, Plano de Kandinsky, é meramente uma evocação, existe apenas na génese da sua criação e nunca no aspecto ou apresentação formal do próprio trabalho.
As formas que vemos no espaço materializam os vários gestos levados a cabo por um condutor de orquestra durante uma performance. E aqui, poderias novamente comparar com as inúmeras tentativas de Kandinsky de transformar a música num modelo para a pintura. Estes gestos não correspondem a notas musicais, mas sim a pausas no meio de uma partitura, como se fossem pausas personificadas que tomam o lugar do agente, na sua ausência ou quietude — sem jamais ocupá-lo ou substituí-lo fisicamente.
A transcendência é assim alcançada através da invisibilidade ou, por outras palavras, de uma materialidade interior. Interrupções, pausas, paragens e descanso dos músicos e performers aparecem aqui com a mesma importância que as notas que eles tocam.
Tendo em conta a mudança de paradigma desde Marx e dos pós-fordistas, vejo aqui uma tentativa de questionar não apenas a imaterialidade do trabalho e sua mecanização, mas a imaterialidade do “tempo livre”.
As capacidades de conhecimento, linguagem, comunicação e afetividade foram "postas a trabalhar" e as temporalidades do trabalho e do tempo livre tornaram-se cada vez mais difíceis de diferenciar à medida que o trabalho se expande dos vários locais de trabalho tradicionais para a “fábrica social”. Considerando The Soul at Work. From Alienation to Autonomy de Bifo Berardi, “the animated social body” deve esforçar-se através da exploração constante das capacidades latentes do próprio corpo produtivo, fazendo uso das diferentes formas de pausa e rupturas como formas de retaliação contra o capitalismo.
Em colaboração com Tiago Ângelo, desenvolvi obras que servem não só como objectos prontos a serem "vocalizados" ou "sonorizados", mas, principalmente, obras que criam essa partitura musical imóvel ao longo da instalação e que se prestarão ao uso do performer, como um recuperar de fôlego.
Nesta altura, em que nos questionamos sobre o pós-humano e discutimos a dissolução das fronteiras entre o homem e a máquina, é essencial reavaliar o modo pelo qual as mesmas são edificadas, através de uma análise de expressões verbais e gestuais presentes nas diversas formas de comunicação e mediação.
Podemos, igualmente, questionar se não houve ou haverá alguma modificação nos gestos de condução musical perante tal mudança? E, que talvez será necessário refletir sobre as diferentes condições gestuais que emergem destas novas formas de mediação algorítmica.
HC: Estes silêncios, dispostos no espaço expositivo tornam-se valores visuais. Parecem impressões secas, vazando o espaço onde são inseridos. Por outro lado, estas esculturas estão expostas juntamente com peças que contêm som, placas de cobre amplificadas. Julgo que a amplificação das peças reforça o seu valor de pausa e suspensão que referes. Ao mesmo tempo, as estruturas pintadas de azul — o mesmo azul do cobre oxidado — contêm uma energia própria da fábrica, das estruturas de apoio ou trabalho próprias a estas. Como é que a fábrica e as pessoas que contigo colaboraram, influenciaram o trabalho? A tua presença naquele espaço, num processo de produção artística, diferente da industrial produz um determinado tipo de intervalo?
AS: Através de várias peças, que transitam entre objectos sonorizados, desenhos espaciais que evocam pautas musicais e referências ao trabalho gráfico de música experimental desenvolvida por Cornelius Cardew, proponho uma investigação sobre o conceito de objecto sonoro e sobre o campo do audível como um campo atravessado por diversos extratos ou camadas de organização do material sonoro.
Tentei que a instalação se desenvolvesse pelo espaço expositivo como se fosse uma orquestra completamente autónoma e sem necessidade de ser acionada pela mão humana. Por isso, temos as estruturas que sustentam as chapas e esculturas de cobre ressonantes e os altifalantes direcionais apontados para outra estrutura com um refletor parabólico móvel, encontrando-se rodeadas por várias esculturas que correspondem a diferentes gestos de pausas e silêncios.
Para mim, é sempre importante pensar o local da fábrica e os seus agentes como “palco” propício a questões da produção (artística e não artística) e do trabalho material e imaterial no contexto da modernização capitalista. O motivo dialético produção/trabalho está presente mas, a meu ver, não difere consoante o tipo de produção. Ou seja, o tempo de trabalho (ou o tempo de lazer) dos trabalhadores é o mesmo quer estejam a produzir objectos artísticos ou objectos não artísticos (seja lá qual for a diferença entre eles).
No entanto, admito existir um tipo de perversão ou humor — na medida, em que se perturba a ordem normal das coisas ou eventos — em observar, na fábrica, a minuciosa manufactura de objectos que, no seu contexto musical, se equiparam a intervalos ou silêncios enquanto espero ouvir o ruído ensurdecedor da campainha que nos indica que está na hora da nossa pausa.
HC: Na exposição, a forma como deambulamos à volta de cada escultura, agindo de forma semelhante à usada para ver a escultura O Beijo de Rodin (talvez isto se possa apelidar de inscrição cultural), que força o espectador a circular à sua volta, criando um movimento quase cinemático.
Associo, também, a disposição das esculturas no espaço, a uma exposição do Michel Majerus, na qual, várias placas metálicas de andaime forravam o chão, tornando o movimento dos visitantes, ao se aproximarem e distanciarem das pinturas, uma “força” audível na exposição.
Rumble Strip é muito efetiva na forma como os trabalhos se desenvolvem no espaço. O fato de algumas obras estarem sonorizadas faz com que a nossa passagem, de umas para as outras, não as ”apague” da nossa experiência — sendo a sua experiência não-óptica — convocando outros sentidos e deslocando-se de um plano mais favorável ao racional para uma experiência total do corpo, interior e exterior. Isto é válido tanto para as esculturas que emitem som como para os “silêncios”, criando um alerta no nosso corpo para o espaço e para as obras que o ocupam.
Neste sentido, julgas que há uma qualidade háptica na exposição? Que a transporta para uma forma muito contemporânea de pensar o espaço e o tempo, formada por um corpo que lida com as novas tecnologias e a maneira como estas transformam os nossos sentidos e subjetividades?
AS: Considero que a qualidade háptica de que falas se afirma a partir deste dogma holístico de que “tudo está ligado e todas as coisas conspiram”. Ou seja, quando os trabalhadores da fábrica produzem estes objetos-ferramenta, com o auxílio dos seus próprios utensílios, a “ferramenta” surge ou devém como uma espécie de substância independente.
O que eles fazem, na verdade, é acionar a engrenagem da máquina ontológica. No entanto, esta transformação ou capacidade de efeito ocorre a partir da ferramenta e não do seu utilizador. Em suma, e também com base na articulação de Graham Harman, os objetos têm as suas próprias qualidades e relações e não se prestam apenas aos propósitos humanos. “The tool isn't “used"- it is.”[1] E os meus objectos-ferramenta, que considero anti-redutivos por excelência, deambulam entre a máquina referencial que nos cerca e que os produz, ao mesmo que mantêm uma integridade individual, apesar da sua inevitável absorção em todo o sistema.
HC: Como surge o título Rumble Strip?
AS: O título Rumble Strip surgiu numa das várias viagens de carro até à fábrica da ArtWorks, na qual o Bruno Lança pisou algumas das guias sonoras (tradução portuguesa de rumble strip) presentes nos limites laterais da auto-estrada e que, de alguma maneira, me fizeram pensar nessa materialização táctil de um aviso que se pretende sonoro (ou vice-versa?) — e na própria linguagem que enquanto ferramenta vai abrindo possibilidades para a criação de uma espécie de meta-espaço holístico presente nas diferentes dimensões paralelas que antecedem, transitam em simultâneo e são futuras ao objecto artístico.
HC: Esta abertura ao que se passa à tua frente (estou a pensar no título, mas também na ideia de espaço holístico) dá-me vontade de perceber como entendes ou lidas com a oportunidade ou com o acaso. Entendes a tua obra como acontecimento ou é uma coisa mais elaborada e predeterminada. Com tudo aquilo que referiste, pergunto-me se não haverá aqui um espaço de trabalho que acontece entre o algorítmico, o holístico e o indeterminado, algo mais humano, que entende a obra como acontecimento, como chegada do futuro ou passagem do futuro pelo presente (a obra é sempre um devir obra, não?)
AS: O meu processo de trabalho é, geralmente, antecedido e acompanhado por uma pesquisa e investigação bastante elaborada e premeditada. No entanto, ao decidir ter este controlo sobre a génese do próprio trabalho, à medida que o projecto se desenvolve vou, de uma maneira voluntária, perdendo o controlo e deixando os objectos fluírem mais livremente na sua própria produção e instalação. Neste contexto, ver ou criar significa também acelerar a nossa percepção e assimilação do que nos rodeia no campo da experiência quotidiana. E esta abertura aos impulsos “externos”, o lidar com o acaso, com erros, novas (im)probabilidades cria um território híbrido de correlação e exploração entre todos os elementos da realidade exterior e os objectos que faço, que penso ser o potenciador desse carácter messiânico que está implícito quando mencionas a “passagem do futuro pelo presente”.
Hugo Canoilas é licenciado em Artes plásticas pela ESAD, Caldas da Rainha. Como artista tem vindo a expor regularmente com destaque para Frankfurter Kunstverein, De Appel, Le Magasin, Fundação Calouste Gulbenkian, Bienal de São Paulo, Kunsthalle Wien e Museu do Chiado Lisboa. Dirige, conjuntamente, com Nicola Pecoraro e Christoph Meier o projecto Guimarães em Viena onde vive e trabalha.
[1] Harman, Graham, Tool-Being. Heidegger and the Metaphysics of Objects, Open Court Publishing Company, 2002
Andreia Santana, Rumble Strip. Vistas da exposição na Artworks, Lisboa. Fotos: © Bruno Lança. Cortesia da artista e Artworks.
Andreia Santana, Rumble Strip. Produção das peças da exposição na residência artística No Entulho, Artworks, Porto. Fotos: © Bruno Lança. Cortesia da artista e Artworks.