Editorial
Em 2016 visitei uma exposição dedicada à figura do Apollinaire cujo enfoque específico eram os anos 1902-1918 altura em que o poeta se tinha dedicado profusamente à critica de arte em formato de crónicas do seu tempo. Apollinaire, un homme-époque, tinha logrado como ninguém, na sua breve existência, imiscuir-se em todo tipo de aspecto cultural, e relacionar-se com os agentes artísticos da Paris da época. Na mesma altura encontrava-me a ler a revista americana The Little Review, editada por Margaret C. Anderson, que, entre 1914 e 1929, tinha sido pioneira no convite dirigido a autores modernistas norte-americanos, mas também ingleses, irlandeses e franceses, para publicação de poesia experimental, literatura, recensões de livros feministas ou ensaios de temática anárquica, conversas, música, crítica e arte.
Um certo experimentalismo associado à crónica de arte, dentro de um espaço de liberdade que defendo, respondiam perfeitamente ao que pretendia. Ao estruturar-se enquanto resposta a perguntas, a crónica permite situar o foco narrativo invariavelmente na 1ª pessoa apresentando um discurso que se move entre a reportagem e a literatura, entre o oral e o literário, entre a narração impessoal dos acontecimentos e a força da imaginação.
Foi assim que surgiram os pressupostos do primeiro número em papel da revista Contemporânea utilizados para abordar uma cidade, o Porto, a sua complexidade cultural e riqueza visual, na relação entre arte, tempo e cidade, produção e inscrição de discursos artísticos, morfologia urbana, hipóteses e verificações sucessivas.
Esta edição conta com os contributos de Ana Fernandes, Carla Filipe, Daniel Martins, Gabriela Vaz-Pinheiro, Guilherme Blanc, Isabel Carvalho, Joana Patrão, João Ribas, Miguel von Hafe Pérez, Nuno Maio, Paulo Mendes, Pedro Huet, Ramiro Guerreiro, Ricardo Nicolau, Sofia Ponte, Susana Lourenço Marques, Teresa Chow e Von Calhau!.
O recorte dos contributos, a partir de diferentes perspectivas, consentem mostrar a riqueza das relações que intercorrem entre disciplinas, entrelaçar tramas, individuar problemáticas. Favorecendo interpretações e elaborações críticas de distintas formas do fazer artístico, a tónica foi colocada naquilo que é a ideia de cidade, a saber; um receptáculo de relações, acções, palavras e memórias, capazes de oferecer um aporte material, funcional, cultural e social para incentivar o intercâmbio e o trâmite necessário à criação e à circulação de recursos.
Os vários textos e contribuições, incluídos nesta edição da revista Contemporânea, sem pretender esgotar o panorama de possibilidades de entendimento e os agentes activos na cidade, incluem o ensaio visual feito com restos de materiais para desenho de projecto que caíram em desuso com as ferramentas digitais, o discurso, o texto, a cidade enquanto espaço privilegiado de partilha de vínculos e sentimentos colectivos, a cultura como res (coisa) pública, a dimensão mais autenticamente política da cidade enquanto aspecto essencial da experiência urbana entre tecidos de memória e histórias, um certo nomadismo da prática artística, espaços alternativos e uma ideia de comunidade e de trabalho colaborativo, poesia e desenho, a mudança da política cultural institucional, aproximações por tentativas e erros, paisagem interiorizada, ensino artístico e espaços de sociabilização.
A partir de duas palavras ou conceitos constantemente utilizados, muitas vezes de forma errónea, na linguagem e na escrita da arte contemporânea – a hipótese e o a priori – em conjunto com um formato predefinido, esta edição temática da Contemporânea reflete sobre as idiossincrasias que caracterizaram e continuam a caracterizar o Porto.
Antonia Gaeta
(Itália, 1978) é Licenciada em Conservação dos Bens Culturais pela Universidade de Bolonha, Mestre em Estudos Curatoriais pela FBAUL e Doutorada em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da UC. Desenvolveu projectos de investigação e exposição com diversas instituições artísticas em Portugal e no estrangeiro e tem textos publicados em catálogos de arte e programas de exposições. Foi coordenadora executiva das representações oficiais portuguesas nas Bienais de Arte de Veneza (edições 2009 e 2011) e de São Paulo (edições 2008 e 2010) para a Direcção-Geral das Artes. Em 2015, foi curadora adjunta do Pavilhão de Angola na 56ª Bienal de Veneza. Desde 2015 desenvolve projectos curatoriais para a colecção de arte bruta Treger/ Saint Silvestre.