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Entrevista a Nuno Faria

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José Marmeleira

"Gosto de explorar o museu como um lugar onde o espectador se constitui."

Há cinco anos na direcção artística do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), Nuno Faria conversou com José Marmeleira sobre a realidade que a sua programação tem construído. Guiada por ideias, gostos, aspirações, com as obras e os artistas.

Numa entrevista ao Público, em Novembro de 2016, disse que o país conhecia mais ou menos o CIAJG. Considera, um ano depois, que o conhece melhor?

Uma das melhores medidas de notoriedade de um lugar, sobretudo no âmbito da cultura, é quando as pessoas sabem que existe. Desse ponto de vista, o CIAJG está no mapa, tem uma intensidade e energia que são reconhecidas. Há pessoas que o visitaram mais que uma vez, que usufruem dele. Portanto, a minha impressão, muito parcial, é a de que o museu goza de um certo prestígio, que o trabalho que realizámos tem uma certa originalidade. Também já desperta alguns ódios de estimação, o que significa que tem uma programação com personalidade. Mas ainda não encontrou a frequência de visitas que gostaríamos que tivesse. E dou um exemplo: em 2017, nenhum dos críticos dos jornais portugueses que regularmente acompanha as exposições de arte, visitou o CIAJG. Isso quer dizer que é um sítio que ainda está num limbo.

Como explica essa ausência dos críticos? Ainda se deverá à perceção de que as coisas acontecem em Lisboa e no Porto e menos no resto do país? Essa dicotomia em termos culturais ainda é uma realidade?

Talvez, apesar de haver uma maior abertura. Há mais lugares qualificados, com uma programação constante, do que havia em 1997, quando o Instituto de Arte Contemporânea se afirmou, e se verificou uma maior atenção do Estado relativamente à arte contemporânea. Por outro lado, há pouco espaço nos jornais, impõe-se uma seleção e é natural que os críticos, estando baseados em Lisboa, deem mais atenção ao que acontece aí. Mas, em geral, a crítica em Portugal encontra-se cerceada por falta de condições efetivas de independência, de autonomia e de valorização. Considero muito revelador e relevante que quem faça crítica, faça outras coisas, produzindo conhecimento, mas a crítica é um exercício muito específico para o qual é preciso uma independência de afeições, de compromissos, de cumplicidades. Em Portugal não há condições subjetivas para um exercício crítico totalmente autónomo, há uma promiscuidade muito grande. Não digo que essa promiscuidade seja negativa, porque existe um respeito mútuo entre as pessoas, mas é sempre toldada por uma proximidade que considero excessiva.

Não podem as escolhas ser determinadas essencialmente por uma questão de gosto?

O gosto está no âmago da crítica, desde o Baudelaire. E é essa a crítica que me interessa, uma crítica de gosto, mas feita de uma forma lapidar. Creio que o contexto artístico em Portugal é muito pouco ordenado. Há muitas situações híbridas, e não me excluo dessa hibridez. Mas sinto, também, que a diversidade da produção artística e das diferentes formas de visibilidade que ela vai tendo, se encontra muito mal coberta do ponto de vista crítico. Claro que há condicionamentos, mas a diversidade do meio não está devidamente plasmada no retorno crítico.

Sobretudo, nos últimos dois anos, tem-se notado no CIAJG, em termo programáticos, a afirmação de um certo enquadramento de sensibilidades, de universos artísticos, de temas como o animismo, o xamanismo, o desenho, uma certa evocação do mundo natural, a arte dos não-artistas. Há uma identidade que se vai tornando percetível nas exposições que o CIAJG apresenta…

Concordo, essa leitura é interessante. A programação regular do centro começou em 2014 e os dois anos anteriores foram anos de constituição do centro, com a exposição inaugural, Para além da história, a anunciar um mapa que viria seria explorado. Houve, em seguida, As lições da escuridão que já se aproximava mais do formato que queríamos desenvolver. Em 2014, e no ano seguinte, já fizemos exposições que são muito marcantes das questões que refere. Refiro-me a Ernesto de Sousa e a Arte Popular, Carlos Relvas - Um homem tem duas sombras, Inquéritos ao Território: Paisagem e Povoamento, Oracular Spectacular, desenho e animismo. Já introduzem esses tópicos que serão aprofundados e disseminados noutros momentos. Pergunto-me, por vezes, sobre o que farei quando não estiver a programar o centro…esta é uma programação muito específica. Resulta de um trabalho de raíz, concebido desde o início por mim e outras pessoas, em diálogo com o José de Guimarães. Talvez se possa falar, por isso, de uma autoria muito marcada…

E de um ponto de vista…

Sim, um ponto de vista, mais que uma autoria, é verdade. Há questões que me interessam muito e têm que ver com as coleções do centro. Uma delas é a prevalência da potência da arqueologia sobre a história, para indagar o que se passou. A arqueologia tem esta abordagem material, do toque, mais do que do olhar. A mim interessa-me uma arte que não seja retiniana, com também me interessa a questão do anonimato versus a autoria. Quero explorar este lastro anónimo da produção de objetos artísticos. Em Janeiro, vamos dedicar a sexta edição dos “Encontros para além da História” ao nascimento da arte e, em particular, ao livro homónimo de George Bataille, sobre a caverna Lascaux. Aí serão debatidos o apagamento da autoria, a ideia de uma arte que é extemporânea, que vem fora do seu tempo, que surge sem tempo, sem origem precisa, que tem um fundamento mais antropológico do que cultural ou estético. São temas que venho a trabalhar há algum tempo, que anunciara aqui e ali, noutras exposições, e que se juntaram todos no espaço do CIAJG, num projeto que me trouxe grande alegria e empolgamento. Numa programação concebida por mim, estas questões passaram a ter um sentido mais total. É uma linguagem que está ali. Por outro lado, interessam-me bastante os universos artísticos que são mais marginais, ou que se conformam menos às categorizações, que manifestam dúvidas ou ceticismos em relação a esta máquina mediática associadas às instituições. O Otelo MF, a Mumtazz…

Pode-se afirmar que o trabalho do Nuno Faria tem vindo a contribuir para a visibilidade desses artistas?

Sim, com outras pessoas. Já trabalhara com o Otelo MF em 2008, no Algarve, e colaborámos juntos em vários momentos que culminaram na exposição na Culturgest do Porto, em 2016 e, mais recentemente, na Galeria Zé dos Bois. A Mumtazz, o António Poppe, o Thierry Simões, a Andreia Brandão, a Laetitia Morais são outros artistas com os quais tenho vindo a trabalhar. Há um conjunto de artistas cujo trabalho é muito marcado por aquele contexto. Por exemplo, na exposição que fez no CIAJG, o Edgar Martins ampliou muito os próprios modos de apresentação e de produção. Mas também gosto de explorar a ideia do museu, não tanto como mero repositório de objetos, mas como um lugar onde o espectador se constitui. Aí, os objetos são pontos de ancoragem, elos transmissores, objetos transitivos que fazem uma ligação entre lugares, consciências. Tenho a ambição que o centro seja um museu dos museus. Por um lado, é uma herança de várias outras coisas que fui vendo, por outro, escrutina-se de forma muito cuidadosa e subterrânea como lugar estranho, quase implausível e que só o visitante torna possível. É ele quem aceita que naquele espaço convivam objetos que provavelmente não foram feitos para se encontrarem, que foram roubados à escuridão. Nesse sentido, trata-se de um lugar que exerce violência sobre os objetos, os usos, a sacralidade e o secretismo de alguns gestos. O museu vive de um paradoxo e tem que o suportar, o paradoxo de querer dar a ver e preservar objetos que não foram feitos para serem vistos…

Há aí um risco…

Sem dúvida e uma fratura. É isso que me interessa num museu. Ser um lugar imponderável e só pensável a partir desta forma de visitação e presentificação que é ativada pelo espectador. Por isso, digo que o museu é um espaço onde o espectador se constitui, muito mais que um espaço que preserva ou mostra objetos.

Esse museu solicita um espectador exigente….

O museu é um espaço que veio substituir outros espaços, espaços de sacralidade. Nele, o espectador tem ser exigente consigo próprio. Uma das coisas que sempre me fascinou nos museus foi a possibilidade de ver um só objeto ao longo dos tempos. Porque ver as coisas não é a única experiência que o museu nos proporciona, ele também nos dá a medida do tempo que passa sobre nós, o das nossas próprias transformações…

A objetividade das coisas contra a nossa subjetividade…

Sim, exatamente. E essa experiência não acontece apenas num museu, mas também na leitura de um livro. A experiência muda connosco, mas o livro permanece. Por isso, gosto muito do museu clássico, porque é um museu onde as coisas não mudam. Nesse sentido, o CIAJG é uma experiência espiritual, mas também é iminentemente física, judicativa, estética e antropológica. E há poucos sítios onde isso acontece. O museu não é um sítio de distração, mas de concentração, de contemplação. Proporciona uma experiência de rotura na nossa experiência quotidiana em que domina uma permanente distração. No centro, isso acontece não apenas na apresentação das obras, mas numa dimensão mais existencial, na forma como o ar é um elo transmissor entre várias épocas. É um elemento que une o espaço ao visitante, ao espectador.

 

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objectos estranhos
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pedro calapez
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tomas cunha ferreira
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Guimarães é uma cidade de média dimensão que tem no seu centro vários espaços culturais e artísticos. Esse é um aspeto é muito aliciante, em termos de acessibilidade aos lugares. De que forma esta realidade se articula com o fenómeno da turistificação e com a sensibilização difícil e laboriosa dos públicos para a arte contemporânea?

Guimarães é uma cidade com um forte apelo turístico, mas o excesso de turismo ainda se sente pouco. Entretanto, foi desenvolvendo uma sensibilidade à cultura contemporânea e criando um conjunto de equipamentos, como o Centro Cultural Vila Flor, o CIAJG, a Casa da Memória, o Centro para os Assuntos da Arte e Arquitetura. Mas a sua massa crítica não é muito expandida. Está a formá-la, com um trabalho de fundo desde 2012, com a Capital Europeia da Cultura, que vai dar frutos, assim se mantenha esta realidade. É, também, uma cidade que quer ser cada vez mais marcante no ensino artístico, há uma ligação com a universidade cada vez mais forte. Agora, sinto que em Lisboa teria outra ressonância crítica, outro número de visitantes. Recordo que aquelas coleções são muito qualificadas. Por exemplo, a coleção de arte africana está entre as muito boas coleções internacionais do género. Não é uma coleção menor. Portanto, com outra visibilidade, o centro já teria dado outro salto, até qualitativo. Dito isto, numa cidade ainda preservada da gentrificação, em que os ritmos são mais saudáveis, ter um espaço como o CIAG é um luxo, e a fruição talvez seja mais plena, mas falta o centro ser entendido como um lugar indispensável à vida quotidiana das pessoas.

De que modo os artistas têm trabalhado a colecção José de Guimarães?

É muito frequente haver uma primeira intervenção mais pontual na coleções, para depois haver um trabalho de fundo com cada artista. Aconteceu isso com o Vasco Araújo, pela relação que o seu trabalho tem com o colonialismo e o pós-colonialismo, que também interessam ao Centro. Aconteceu com a Filipa César, com o Daniel Barroca, com f.marquespenteado. E com artistas que, à partida, não teriam uma relação forte com aquele lugar, como foi o caso de Edgar Martins. O arquivo e o mapeamento da morte foram temas que trabalhámos e a sua abordagem, em termos de investigação e documentação, revelou-se muito próxima de questões que são sensíveis ao centro. A nossa programação é bastante lata. Há uma diversidade grande de propostas artísticas, mas é um ponto muito importante haver uma relação com temas como o animismo, o xamanismo, a contracultura…

Há um interesse por esses tópicos…

Há um interesse meu e são questões que têm que ver com as coisas que ali temos, com as culturas que ali estão guardadas.

O desenho tem sido outro campo muito explorado…

O desenho interessa-me, como a fotografia também me interessa. São disciplinas que, de uma certa forma, são indisciplinas. São meios muitos ligados ao universo artístico, mas que estão nas margens. Interessam-me como linguagens protoartísticas, como membranas que estão entre tempos, entre lugares, que são fantasmagóricas. E também, muitas vezes, como segmentos, partes das obras dos artistas que são consideradas menores e invisíveis e onde se vê a raíz ou a verdade da obra, da linguagem dos próprios artistas.

Em que medida o encontro do Nuno Faria com a coleção e o património arqueológico da região contribuiu para a definição programática da curadoria?

A programação pode ser vista como um afloramento de um conjunto de questões que me interessam há muitos anos e que foram sendo refinadas, retrabalhadas. Quando olho para trás, encontro ideias que acabaram exploradas e aprofundadas de uma forma mais expandida, instrumental e concentrada no CIAJG. O projeto é feito com um conjunto de objetos que tínhamos, mas, também, com um território que ocupámos. Desde o início que procurámos esta convivência entre os fetiches da arte africana e os objetos da região, como os ex-votos em cera. Esta relação entre a estranheza e a familiaridade, entre a proximidade e a distância, entre a autoria e o anonimato, ficaram muito postas em casa. O programa junta estas coisas todas e, por isso, expande e, ao mesmo tempo, coloca em causa os próprios fundamentos da autoria da arte contemporânea. Por isso, é um sítio muito desafiador e eminentemente crítico do processo canibalístico da produção artista contemporânea. É um sítio um bocadinho alienígena e que, ao mesmo tempo vai aos fundamentos da coisa.

Perguntava-se sobre o que iria fazer quando já não estivesse no CIAJG. Que os outros projetos gostaria de desenvolver?

Estou muito comprometido com o CIAJG, mas tenho o cuidado de não me sentir dependente de nenhum projeto. É saudável termos o sentido da precariedade, porque ela existe no nosso meio artístico. Mas uma instituição como CIAJG não deve produzir apenas exposições, sobretudo, deve produzir conhecimento. Nesse sentido, há muito trabalho a fazer. É importante que instituições como esta sejam recetoras da massa humana, de pessoas que trabalhem na área. O projeto deve ter a marca de uma programação forte, mas não quero que seja fulanizado. Idiossincrático é seguramente, mas considero importante que se constitua uma equipa própria de curadores, de investigadores. Esse é uma das tarefas que gostava de ver cumprida quando um dia sair do Centro. Agora, interesso-me por projetos de diferentes escalas, por questões mais relacionadas com a investigação. Quero ter tempo de escrever, de editar coisas. Tenho projetos com outras pessoas que não podem coincidir com o trabalho no Centro. Estão ligados ao campo da edição e ao contexto de um trabalho mais próximos dos artistas. É possível que o meu próximo projeto venha a ter uma escala mais pequena, mais cirúrgica. Mas neste momento não estou a pensar no que irei fazer depois do CIAJG. Este é tão absorvente que exige uma dedicação muito grande, sendo que as outras coisas que faço, no campo da curadoria, são importantes para poder ter outro tipo de respiração…

José Marmeleira

Jornalista e crítico nas áreas da música pop e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Time Out Lisboa. Lecciona Fundamentos do Jornalismo na Universidade Europeia e está a realizar o doutoramento em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL).

 

CIAJG - Centro Internacional das Artes José de Guimarães

 

 

 

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Imagens: Cortesia de CIAJG. Fotografias: Vasco Célio e Ricardo Nascimento/Stills. 

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