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Marta Soares: Pinturas Arrancadas à Noite

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Isabel Carlos

Num tempo em que a arte é dominada por narrativas, interpretações, mensagens e discursos, a pintura abstracta é não só um acto de persistência como de resistência.

A abstracção é, desde sempre, o território de trabalho eleito por Marta Soares (Lisboa, 1973) mas nunca numa escala monumental como nesta exposição; basta atentar na dimensão, 300 x 225 cm, de seis das telas do conjunto de 10 obras que se apresentam numa montagem rigorosa e em profunda sintonia com o espaço da jovem Galeria Francisco Fino, no que é a sua  primeira exposição de pintura-pintura, para recuperar uma designação muito em voga no discurso crítico da década de noventa, a mesma altura em que Soares iniciou o seu percurso artístico.

Se a escala é de algum modo esmagadora e ultrapassa consideravelmente a dimensão média do corpo humano, o processo que lhe subjaz é igualmente hercúleo: as telas previamente trabalhadas são coladas-encostadas a paredes exteriores de espaços públicos onde a artista igualmente interviu mas não ocultando as marcas pré-existentes de outras camadas de tinta e da acção da passagem do tempo — rachas, bocados de tinta caídos que deixam a ver outra cor por baixo, rugosidades e riscos — cicatrizes e memórias de outras intervenções que ficam impressas nas telas depois de arrancadas à parede. Cada uma destas telas torna-se assim numa espécie de enorme mata-borrão da textura e cor de paredes e muros anónimos e públicos. O título da exposição, Pinturas Arrancadas à Noite, para além de ter uma forte carga poética e performativa indica que o trabalho é executado durante a noite. O processo é portanto complexo, fisicamente exigente e nocturno.

O resultado é visualmente poderoso no modo como as diversas texturas, cores e sucessivas camadas e contrastes transformam estas obras numa espécie de grandes panejamentos de sedimentações e a galeria que os acolhe numa catedral imponente e simultaneamente silenciosa. Dito de outro modo, estas telas que acolhem as ruínas das paredes, não de tempos romanos e gregos como no romantismo, não através da figuração e da representação mas através da impressão, operam uma passagem do que é originário do exterior, do espaço público para o interior do cubo branco através de técnicas que associamos mais às técnicas de reprodução do que à pintura. Estas telas são como esculturas fotográficas de muros e paredes, tal como a fotografia passaram por um processo de registo e captura, foram impressas mas de um modo que absorve as rugosidades e as texturas, tonando-as tácteis como uma escultura.

Estas obras na sua abstracção total possuem uma dimensão espiritual no modo como evocam os marmoreados das igrejas ou dos fundos das pinturas de Piero della Francesca que estava imbuído da teologia negativa oriunda da Idade Média: de Deus só podemos dizer que “não é”, não é isto nem aquilo porque está acima e para além do humano e do mundano e logo a abstracção do mármore era a melhor representação que se podia fazer para evocar Deus e um convite à oração e à comunicação espiritual porque não distrai com narrativas e figurações.

Esta exposição não é do reino da distracção, pelo contrário, impele-nos a um mergulho no indizível e no silêncio, o ruído ficou lá para trás, ou lá fora, consoante preferirem a referência ao tempo ou ao espaço.

Marta Soares

Galeria Francisco Fino

Isabel Carlos é Licenciada em Filosofia pela Universidade de Coimbra e mestre em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa com a tese "Performance ou a Arte num Lugar Incómodo" (1993). Crítica de arte desde 1991. Assessora para a área de exposições de Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura. Foi co-fundadora e subdirectora do Instituto de Arte Contemporânea, tutelado pelo Ministério da Cultura. Foi membro dos júris da Bienal de Veneza (2003), do Turner Prize (2010), The Vincent Award (2013), entre outros. Co-seleccionadora do Arts Mundi, Cardiff (2008). Entre as inúmeras exposições que organizou, destacam-se: Bienal de Sidney "On Reason and Emotion" (2004), "Intus" de Helena Almeida, Pavilhão de Portugal, Bienal de Veneza (2005), "Provisions for the Future", Bienal de Sharjah (2009). Entre 2009 e 2015 foi directora do CAM-Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Installation View (2)
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Sem Título VII
Sem Título VIII
Sem Título X
Sem Título IX (Detalhe)
Sem Título IX

Marta Soares, Pinturas Arrancadas à Noite. Vistas da exposição na Galeria Francisco Fino. o. Fotografias: ©photodocumenta. Cortesia da artista e Galeria Francisco Fino.

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