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Rui Toscano. Eu Sou o Cosmos

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Luísa Santos

Rui Toscano. Eu Sou o Cosmos, na Galeria Cristina Guerra, é uma exposição individual de Rui Toscano (Lisboa, 1970), constituída inteiramente por trabalhos inéditos e que surge na continuação de uma investigação e de um corpo de trabalhado iniciados há cerca de uma década sobre os significados da percepção do espaço cósmico. A investigação começou em 2009 com a exposição The Great Curve, no Espaço Chiado 8, e continuou nos anos seguintes, em 2010 com Out of a Singularity, em 2013 com La Grande Avventura dello Spazio (ambas na Galeria Cristina Guerra), em 2015 com Journey Beyond the Stars, na Travessa da Ermida e, em 2015 e 2016, com a Civilizações de Tipo I, II e III no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC) e no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG).

O fascínio pela imensidão do cosmos e pela ambição humana de explorá-lo e entendê-lo é central ao corpo de trabalho que desenha Eu Sou o Cosmos. Etimologicamente, a  palavra cosmos deriva do termo grego κόσμος (kosmos), cujo sentido literal é o que está "bem ordenado" ou "ornamentado" e "mundo”. Este entendimento do cosmos mostra-se particularmente claro nas pinturas Dois Biliões de Estrelas (2018) e Um Bilião de Estrelas (2018). Dominadas, respectivamente, por um fundo branco e por um fundo preto, habitados por pontos e círculos de diferentes dimensões, brancos, azuis e cinzentos, parecem recusar a natureza em favor da abstração. Numa união da bidimensionalidade com a profundidade, estas pinturas transmitem habilmente a definição de sublime Kantiano: um objecto “cuja representação determina o ânimo a imaginar a inacessibilidade da natureza como apresentação de ideias." [1] A experiência interna de olhar para estas pinturas envolve uma sensação inquietante perante algo sem forma e infinito que nos escapa. Por outras palavras, as pinturas colocam-nos diante da imensidão do universo e da percepção da nossa pequenez expondo a nossa faculdade da razão.

Também na Pollux (2018), na Rigel (2018) e na Black Star (2018), três pinturas quadradas com dois por dois metros (em rigor, a Black Star tem pouco mais de dois metros), a bidimensionalidade confunde-se com a profundidade: o plano da figura e o plano do fundo juntam-se num processo reminiscente à “dissolução” de Malevich. Este termo, com conotações cósmicas na sua relação com o fim dos ciclos lineares do tempo e do espaço, foi usado por Malevich para descrever pinturas como a Black Square (1915) ou a Suprematist Composition: White on White (1918). Para Malevich, a vida da cor era indissociável do universo na medida em que as cores desprovidas de objectos revelariam a sua essência imaterial. E é precisamente este estado imaterial, em dissolução, que estas pinturas convocam: são estrelas em diferentes fases de evolução. As reacções nucleares das estrelas nos seus centros dão-lhes energia suficiente para brilharem durante muitos anos. Enquanto as estrelas maiores queimam energia rapidamente, as pequenas demoram mais tempo e duram muito mais. A determinada altura, o hidrogénio que gera as reacções nucleares das estrelas esgota-se e as estrelas entram na fase final das suas vidas. Com o tempo, expandem-se, arrefecem e mudam de cor até tornarem-se gigantes vermelhas, como a Gigante Vermelha (2015), apresentada na Civilizações de Tipo I, II e III no MNAC. As estrelas grandes experienciam um final violento numa explosão designada supernova. Se a estrela for particularmente grande pode formar o buraco negro que a Black Star parece evocar.

Esta ideia de dissolução está presente ao longo de todos os trabalhos que constituem a exposição — ou a instalação, se entendermos cada um destes trabalhos como uma parte de um mesmo corpo numa articulação concertada.

The Dawn of Man (2018), em colaboração com Rui Gato, é uma referência clara ao capítulo com o mesmo título do 2001: A Space Odyssey (1968), de Kubrick. A sequência “dawn of man”, no filme, surge depois da primeira imagem do Monólito Preto no deserto habitado por macacos. Enquanto o sol nasce sobre o deserto, um dos macacos observa partes de um esqueleto de um pequeno mamífero. O som triunfante de “Also sprach Zarathustra” (1896), de Strauss, começa a construir-se na narrativa quando o macaco olha para um dos ossos e vira a cabeça como se estivesse a pensar — como se fosse dotado da faculdade da razão. Neste momento, começa a sequência mais violenta do filme: o macaco pega no osso e esmaga o esqueleto. Paralelamente, vemos imagens, como flashbacks, do pequeno mamífero a cair no chão. As pistas visuais — o nascer (dawn) do sol no início da cena; o momento no qual o macaco usa o osso como instrumento de destruição acompanhado pela orquestra de Strauss; o nascer do sol sobre o monólito — parecem apontar para a importância evolucionária inerente à acção violenta do macaco. O som da escultura sonora, com mais de 70 minutos compostos por Rui Gato a partir desta sequência do filme, conta precisamente esta violência.

A narrativa de The Dawn of Man relaciona-se com a instalação Ilha (2018) que, no seu dispositivo, lembra o trabalho anterior A Grande Pirâmide I (2015). Enquanto as duas projecções fixas, de dois diapositivos de A Grande Pirâmide mostravam uma imagem da Grande Pirâmide de Gizé, no Egipto, considerada a mais antiga — e a única que ainda existe — das Sete Maravilhas do mundo antigo, as projecções da Ilha revelam, sobre um bloco de mármore, um vulcão em erupção e o interior de uma gruta. Os vulcões ocorrem frequentemente acima de lajes de subducção, formando ilhas e arcos vulcânicos. São, na verdade, processos (violentos) de nascimento.

As referências às Grandes Pirâmides do Egipto regressam nesta exposição com o desenho Afterlife (2018). Um conjunto de pirâmides sobrepõem-se numa coluna reminiscente da Coluna Infinita (1938) de Brancusi. Tal como a escultura de Brancusi, o desenho de Rui Toscano parece simbolizar o conceito de infinito associado à noção de cosmos.

Já o Coração do Congo (2018) conduz-nos de volta à nossa finitude. A legenda inscrita no desenho revela tratar-se da representação de uma peça da colecção do Museu do Homem em Paris, uma máscara de dança da região do rio Lomami, no Congo, o lugar do romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad. No desenho, a máscara é representada fielmente com uma excepção: a inscrição, na zona dos olhos e da boca, de três saturnos.

A finitude e a infinidade estão em constante confronto neste corpo de trabalho repleto de referências articuladas em narrativas não-lineares — a grandeza do cosmos teima em ultrapassar a razão que caracteriza a humanidade. O que Eu Sou o Cosmos parece ensinar-nos é que, por mais investigações que façamos sobre a existência do universo, por mais museus que ergamos sobre a história da humanidade, estaremos sempre perante algo que ultrapassa o limite da nossa existência finita. Mas talvez seja esta certeza que amplifica a curiosidade e o fascínio por tudo aquilo que nos rodeia e que, afinal, determina muito de quem somos e de como escolhemos evoluir.

Luísa Santos é Professora Auxiliar na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica, em Lisboa, desde 2016, tendo-lhe sido atribuída uma Gulbenkian Professorship. Doutorada em Estudos de Cultura pela Humboldt-Viadrina School of Governance, Berlim (2015), com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Mestre em Curadoria de Arte Contemporânea pela Royal College of Art, Londres (2008), com Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, e licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (2003), tendo também feito investigação em Práticas Curatoriais na Konstfack University College of Arts, Crafts and Design, Estocolmo (2012).

 

Rui Toscano

Cristina Guerra Contemporary Art

 

notas:

[1] KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1993, §§1-29, pp. 47-112.

 

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Rui Toscano. Eu sou o cosmos. Vistas da exposição na Cristina Guerra Contemporary Art. Lisboa, 2018. Fotos: Bruno Lopes. Cortesia do artista e Cristina Guerra Contemporary Art.

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