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Paulo Quintas: Pintar para dentro

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Rui Chafes

Uma exposição antológica, mais do que adiantar qualquer coisa ao olhar que o artista tem sobre o seu próprio trabalho, é sobretudo uma ocasião para o inevitável confronto com o olhar do público, que desenvolverá uma opinião e uma memória sobre a quase totalidade de uma obra que desconhece (ou que conhece apenas de forma fragmentada). Ao contrário desse público, o artista transporta em si, permanentemente, a sua “obra completa”, a sua “exposição antológica”. Ela está presente em cada minuto passado a trabalhar no seu atelier e é isso que lhe permite avançar, dar o passo seguinte na sua caminhada. Uma exposição antológica é a revelação desse espaço íntimo e permanente e é, também, uma história: a história de um artista, de um pensamento, de uma obra feita de caminhos, becos sem saída e de atalhos.

Uma história inacabada, ainda sem princípio nem fim. Esta exposição, organizada por Isabel Carlos de forma rigorosa e cronológica, permite-nos revisitar pinturas há muito conhecidas ou ver pela primeira vez algumas que apenas conhecíamos por reproduções. É o momento para ver um percurso constante e contínuo, onde também existem telas ausentes ou desaparecidas.

Contrariamente ao que se possa pensar, existem sempre poucos artistas, em cada geração, em cada país, em cada época. Paulo Quintas possui um saber e uma solidez fora do comum, além de uma coerência notável em toda a sua obra, feita de permanente procura e investigação. É o que se costuma definir como um “verdadeiro pintor”, um mestre na sua técnica, na sua pesquisa, na sua autonomia, no seu isolamento… não é um artista errático, à procura do que é suposto fazer para poder ser integrado no seu tempo.

Enquanto artista, admiro aqueles que sabem o que andam a fazer, que carregam um mundo consigo e o fazem renascer de cada vez que mostram o seu trabalho.

Como diz Samuel Beckett, “não há nada a expressar, nada com que se expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar”. É isto que acontece com os artistas sérios, que sabem que nascemos e construímos um caminho no meio do mais absoluto Nada. Falando de Bram van Velde, ele refere precisamente a coincidência entre a incapacidade de pintar e a obrigação de pintar, com a certeza de que a impossibilidade de um artista se expressar, da forma mais verídica que lhe for possível, se encontra regulada pela maneira de utilizar os meios ao seu dispor, ou seja, pelo único domínio do criador: o domínio do fazível. Neste sentido, considero que o trabalho de Paulo Quintas é determinado por uma ética, patente na verdade dos materiais e na aceitação dos limites da sua linguagem e dos seus meios. Sem recurso a qualquer tipo de encenação sedutora nem oferecendo falsas promessas, estas pinturas apresentam-se descarnadas e conscientes da infinita grandeza da sua redução, dos limites que a sua linguagem a si mesma impõe.

A forma é o vazio, o vazio é a forma.

Esta apresentação, no Torreão Nascente da Cordoaria, organiza o olhar sobre uma sequência de imagens que poderão parecer a algumas pessoas “obra de vários artistas”. Pelo contrário, existe aqui apenas um artista, trabalhando por blocos, que começam e que terminam depois de esgotadas as suas possibilidades de pesquisa. Trata-se de uma operação muito bem definida nos seus princípios e nos seus desígnios, alargando sempre o campo de ruptura com o que recusa ser, deitando mão a diversas ferramentas que lhe permitam construir a imagem que ainda não existe no mundo. Esta consciência revela-se nas palavras do pintor: “as minhas pinturas são muito mais construídas do que pintadas.” Através desta construção, material e mental, chegamos a uma pintura mineral, cuja pele não é nem suave nem aveludada. Talvez seja feita de rochas moídas, pedaços de rocha, espuma, vento, areia. É, seguramente, habitada por impossibilidades que se resolvem na teimosa insistência em continuar a tentar. Ao contrário de tantos artistas, que limitam e manipulam o olhar do espectador, este pintor dá-nos espaço para criarmos uma imagem feita de todas as que ali não estão. Talvez seja essa a razão pela qual todos estes títulos estão errados.

Passados tantos anos, o pintor continua a habitar o deserto, as paisagens áridas e esquecidas, varridas pelo vento oceânico que lhe traz a segurança de estar no único lugar possível, mesmo que seja um dilúvio. Nunca saberemos que música habita o vazio destas telas nem qual a que acompanhou a sua chegada ao mundo. No seu atelier, dia após dia, combate o grande cansaço que o ameaça, continuando a pegar fogo às cores ácidas que habitam o seu corpo rochoso. Vai percorrendo o interior dessas paisagens, sem nunca desviar o olhar do seu caminho, ignorando os outros caminhos e os outros caminhantes. Vai pintando o que vê, laboriosamente, teimosamente, com método e insistência.

Mas sabemos que Paulo Quintas é um pintor cego. 

 

Rui Chafes 

(Lisboa, 1966) é um escultor português. Prémio Pessoa (2015).

 

Formou-se em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, em 1989, seguindo depois para Dusseldorf, onde frequentou a Kunstakademie, sob a direcção do artista alemão Gerhard Merz. Durante esta estadia traduziu do alemão para português Novalis Fragments

Expõe regularmente desde os anos 80, e desde cedo consolidou uma carreira que inclui diversas exposições em Portugal e no estrangeiro, bem como representante português na Bienal de Veneza (1995 com José Pedro Croft e Pedro Cabrita Reis) e a Bienal de São Paulo (2004, com o projecto conjunto com Vera Mantero). Em Portugal, expôs individualmente nas mais importantes instituições, como o Museu Serralves (com Pedro Costa), Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu Colecção Berardo (com Orla Barry). 

A sua obra está presente em inúmeras colecções públicas. Tem diversas esculturas permanentes no espaço público em Portugal e no estrangeiro. Em 2004 recebeu o Prémio de Escultura Robert-Jacobsen da Würth Foundation, Alemanha. Parte da sua actividade é dedicada à escrita, tradução e edição de monografias que acompanham o seu trabalho de escultura.

 

Paulo Quintas

Galerias Municipais

 

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Paulo Quintas, Todos os Títulos estão Errados. Vistas da exposição no Torreão Nacente da Cordoaria Nacional. Fotos: António Jorge Silva. Cortesia do artista e Galerias Municipais / Egeac.

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