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Álvaro Lapa: No tempo todo

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Isabel Nogueira

Com curadoria de Miguel von Hafe Pérez, a Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea apresenta a maior retrospectiva de Álvaro Lapa (1939-2006), contando com cerca de 300 peças de pintura, desenho e outros objectos, que abrangem o período de 1963-2005, algumas das quais nunca tendo sido mostradas ao público, nomeadamente um belo conjunto de estudos. Autodidacta como artista e tendo a filosofia como formação e como presença definidora da sua obra, Lapa desenvolveu um percurso artístico relevante no contexto da arte contemporânea portuguesa, merecedor de maior expansão internacional. Próximo de outros artistas implicativos de uma modernidade que se queria urgente – como, claro, qualquer modernidade que se preze enquanto tal –, Álvaro Lapa privou, entre outros, com António Charrua, Ângelo de Sousa, António Palolo, Joaquim Bravo, João Cutileiro, António Areal ou Ernesto de Sousa.

Lapa começaria a expor individualmente em 1964, na Galeria 111, num país fechado e conservador, no qual, contudo, a modernidade artística ia conseguindo concretizações meritórias. Por estes anos, António Areal, ligado numa primeira fase ao surrealismo, publicava um texto em 1963 – texto que, com outros, seria reeditado na antologia de 1970, Textos de crítica e de combate na vanguarda das artes visuais –, no qual lavrava uma reflexão sobre abstracção e Nova Figuração. Estas inquietações aproximavam-no ao universo de Álvaro Lapa. Nesta altura (1962-1963), Eduardo Lourenço publicava também no suplemento “Cultura e Arte” do jornal O Comércio do Porto um notável texto, intitulado “Pintura antipintura não pintura ou a nudez do rei”, e, referindo-se à pintura moderna, observava que o seu fio condutor era o “repúdio da imitação do real”. No âmbito destas problemáticas artísticas e estéticas, Álvaro Lapa participaria, em 1973, na importante mostra colectiva Pintura Portuguesa de Hoje: Abstractos e Neofigurativos, com obras numa encruzilhada plural do abstraccionismo/nova abstracção e da chamada Nova Figuração, partilhando com outros artistas o pulsar estético do momento.

Em 1974, Álvaro Lapa integrou novamente uma exposição colectiva polémica e implicativa no contexto de afirmação da modernidade e do experimentalismo, a EXPO AICA SNBA 1974, concretamente, o núcleo organizado por Ernesto de Sousa, designado Projectos-Ideias. Um pouco mais tarde, em 1977, Lapa faria parte da exposição colectiva mais importante dos anos setenta, novamente organizada por Ernesto de Sousa, a Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, onde apresentou a peça O caderno de William Burroughs II, pertencente a uma série evocativa de escritores e, naturalmente, do complexo fenómeno da linguagem e dos conceitos. A imagem e a palavra consistentemente presentes enquanto compostos paradigmáticos dos interesses e do modo de operar do artista. Há efectivamente uma vontade imperiosa de modernidade que define a obra de Álvaro Lapa, fazendo-o participar activamente nos processos de desintegração da grande narrativa modernista e de afirmação de novos pressupostos experimentais. Em 1983, faria parte da exposição que lançou publicamente e difundiu o conceito de pós-modernismo, então uma entidade nova e, a seu modo, inquietante. A mostra Depois do Modernismo, com curadoria de António Cerveira Pinto, Leonel Moura e Luís Serpa, lançou a polémica e, uma vez mais, Lapa estava presente. Esta presença em torno da questão do pós-moderno voltaria a suceder no ano seguinte nas exposições colectivas Os Novos Primitivos: os Grandes Plásticos (1984), com curadoria de Bernardo Pinto de Almeida, e Atitudes Litorais (1984), organizada por José Miranda Justo. No final da década, em 1987, Lapa recebia o importante Prémio AICA. Em 2004, ser-lhe-ia atribuído o Grande Prémio Fundação EDP Arte.

Participante activo da contemporaneidade artística de parte importante da segunda metade do século XX português, Álvaro Lapa afirmou-se num percurso singular. Em Serralves, por entre desenhos, estudos, pintura pautada por uma figuração depurada e elegante, ao longo do universo da imagem e da palavra – e esta muitas vezes tornada também visualidade –, entre coloridos vibrantes, negros densos e brancos pastosos, ou ainda no meio de frases enigmáticas e evocativas, a vasta obra de Álvaro Lapa ocupa um espaço bem organizado, que convida o espectador a participar não apenas num percurso cronológico, mas sobretudo numa ordem conceptual, crítica e interpeladora de fundo. Finalmente, importa reflectir sobre um certo enigma e um silêncio que atravessam estes trabalhos. Há um espaço de respiração, de suspensão, que deixa lugar à pergunta – não necessariamente esperando uma resposta – e ao atiçar da imaginação. No Tempo Todo – expressão retirada de um dos seu quadros – é uma exposição que propõe uma envolvência e convida a nela entrar. Cada um, naturalmente e sempre, no seu tempo.    

Isabel Nogueira

(n. 1974). Historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Doutorada em Belas-Artes/Ciências da Arte (Universidade de Lisboa) e pós-doutorada em História da Arte Contemporânea e Teoria da Imagem (Universidade de Coimbra e Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Livros mais recentes: "Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo” (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012; 2.ª ed. 2014); "Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo" (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013; 2.ª ed. 2015); "Théorie de l’art au XXe siècle" (Éditions L’Harmattan, 2013); "Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

 

Museu de Arte Contemporânea de Serralves 

 

Serralves Álvaro Lapa 0791 Instrução pessoal
Serralves Álvaro Lapa 0792 Sem título
Serralves Álvaro Lapa 0764 Em que pensas No tempo todo
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (11)
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Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (13)
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Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (92)
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Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (87)
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Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (73)
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Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (37)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (1)

Vistas da exposição "Álvaro Lapa: No Tempo Todo". Museu de Arte Contemporânea de Serralves. 2018. © Fotos: Filipe Braga. Cortesia de Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

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