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Diana Policarpo: Nets of Hyphae

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Eduarda Neves

 

Diana Policarpo é uma artista visual e compositora. Actualmente desenvolve a sua actividade artística entre as artes visuais, música electroacústica e a performance multimédia. No contexto da sua prática artística, investiga relações de poder, cultura popular e política de género, justapondo a estruturação rítmica do som como um material táctil no âmbito da construção social da ideologia esotérica. Cria performances e instalações para examinar experiências de vulnerabilidade e empoderamento associadas a actos de exposição face ao mundo capitalista. Nets of Hyphae é a mais recente exposição de Diana Policarpo com curadoria de Stefanie Hessler. Pode ser vista na ​Galeria Municipal do Porto​ até ​​14.02.21, data a partir da qual seguirá para a Kunsthall Tröndheim na Noruega (de 11 Fevereiro a 18 Abril ) que co-produziu. Sobre esta exposição será publicado um livro pela Mousse Publishing. Esta conversa desenvolveu-se em torno de Nets of Hyphae.

 

Eduarda Neves (EN): Na exposição Nets of Hyphae, estabeleces relações críticas entre o ergotismo, políticas reprodutivas e epistemologias alternativas. As conexões especulativas a que recorres parecem funcionar como estratégias de aproximação política a realidades só aparentemente distantes. É assim?

 

Diana Policarpo (DP): Este é um projecto grande que iniciei em 2019 e que se vai materializar de várias formas. A exposição Nets of Hyphae e o livro com o mesmo título marcam o primeiro momento e a apresentação de várias obras que funcionam como uma constelação de diversas narrativas que se interligam e analisam a  presença do fungo ergot ou esporão-do-centeio na nossa sociedade ao longo dos séculos. Comecei a desenvolver o projecto a partir da análise do ciclo de vida complexo deste fungo alien, a forma como este contamina o sistema reprodutivo das plantas e das pessoas com útero e a ler sobre mitologias e biografias associadas ao psicadelismo a partir desta planta híbrida. As alucinações, estados de transe, animismo e contaminações são temas presentes nas várias narrativas que se cruzam nesta exposição.

As doenças causadas pelo ergot que contamina plantações inteiras de cereais comuns, especialmente do centeio, tiveram um forte impacto na história humana e na agricultura, causando epidemias devastadoras. No entanto, os alcalóides do ergot, que são os componentes tóxicos deste fungo, têm sido usados para fins terapêuticos, espirituais e medicinais há muitos séculos. As parteiras utilizaram este fungo como método principal para o auxílio nos partos, hemorragias excessivas e também como abortifaciente. A utilização do ergot para fins terapêuticos (pré-LSD) e a contaminação através do consumo dos cereais continuou por muito tempo, embora só tenha sido estudado após um período de empobrecimento em grande escala e perseguição de pessoas sob a alegação de bruxaria pela Europa ou de eventos conhecidos como a Dancing Plague, a doença Fogo de Sto. António ou ergotismo (que inspirou o tema das Tentações de St. Antão do Hyeronimus Bosch), os bread riots  etc. Interessei-me por várias histórias que abordam a herbalogia, a magia e a saúde como parte integral da vida social e política das mulheres nas suas comunidades durante a transição do feudalismo para o capitalismo. 

 

EN: Na obra Bosch´s Garden, convocas, por um lado, o ergotismo e a alquimia, por outro, a fertilidade. Tratando-se de uma possibilidade hermenêutica equacionada neste projecto, que aproximações procuras estabelecer entre os alcaloides tóxicos da cravagem, os seus poderosos efeitos sobre os sistemas circulatório e neurotransmissor e a obra de Hieronymus Bosch, As tentações de Santo Antão?

 

DP: Bosch esteve sempre em mente para este projecto no sentido em que este tríptico podia estabelecer um diálogo interessante com as outras obras que iam ser apresentadas na exposição. As Tentações de Santo Antão é uma pintura que já conhecia bem desde criança, pois morava perto do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e ia sempre acompanhada pela minha avó. É uma espécie de mosaico cultural da intoxicação e representa simbolicamente as causas e curas das alucinações resultantes do ergotismo.

Após ter tido a aprovação do Museu Nacional de Arte Antiga, comecei a trabalhar numa animação digital pensada para três projecções com o João Pedro com quem já tinha colaborado anteriormente e que acompanhasse o meu texto. É um vídeo curto como todos os vídeos da exposição, mas que teve um processo super longo de preparação das imagens e visto haver muitos pormenores da pintura animados. A outra animação 3D que está nesta exposição Infected Ear, também é uma animação digital sobre a mutação dos vários corpos (vegetal, animal e humano) durante o ciclo de vida do ergot e foi criada com outro amigo, o João Cáceres Costa, com quem já tinha colaborado no projecto anterior, Death Grip.

A pintura medieval forneceu contribuições importantes sobre o imaginário medieval, do quotidiano, da vivência colectiva e individual e do significado das metamorfoses humanas e não-humanas que habitam muitas das cenas. Alienação, desordem ou loucura são parte dos efeitos de um comportamento dito anormal e com inúmeras designações. Logo, o ergotismo é marginal por natureza e teve sempre um aspecto negativo e ligado à feitiçaria. É estrutural na história das substâncias psicoactivas a sua territorialidade e a sua codificação cultural. Nesta altura, era muito comum estar num estado permanente de contaminação, pelo fungo do centeio, através de bebidas ou do pão que era o alimento principal das classes mais desfavorecidas.

A responsabilidade desta sombria associação devemos procurá-la tanto na ciência como na cultura.

Escrevi um texto que fala dos símbolos, das causas e das curas desta doença representada nos três painéis, mas também pretende guiar o olhar do espectador pelos símbolos mais importantes desta, o fogo e a alquimia, indispensáveis nos processos de sintetização e de transformação de um estado para o outro.

Este vídeo fala sobre o simbolismo do fogo, poções e curas. As interpretações que faço desta pintura apontam para o simbolismo dos personagens, feitiçaria, alquimia e medicina. A historiadora Laurinda S. Dixon que escreveu extensivamente sobre Bosch disse que esta pintura faz uma referência clara ao ergotismo.

 

EN:  Nets of Hiphae, propõe-nos o confronto com a libertação sexual e as lutas das mulheres pelo controle dos nascimentos na transição para o capitalismo. A história das mulheres e o seu papel na luta contra o poder feudal, questionando as normas sexuais dominantes, estudado por Silvia Federici, povoam esta exposição?

 

DP: Federici é uma filósofa super importante e os ensaios Wages for Housework e Caliban and the Witch são essenciais para o feminismo marxista. Interesso-me exclusivamente por um feminismo que é anti-racista, anti-capitalista, que luta pelos direitos das pessoas trans e das trabalhadoras do sexo. Os corpos alertam-nos sempre para a reciprocidade e o que temos em comum, enquanto que a propriedade e o trabalho alerta sempre para desigualdade e para o que nos separa. O vídeo The Oracle explora essa necessidade de analisar as práticas mágicas com a consciência de classe e colocá-las ao serviço de uma transcendência mais colectiva do que a transgressão pessoal.

Pouco tempo depois de eu viver em Nova Iorque, removeram a estátua do John Marion Sims do Central Park. J. M. Sims foi considerado "o pai da ginecologia" graças ao sofrimento causado a mulheres negras, entre elas a Lucy, a Anarcha e a Betsey que sofreram inúmeras experiências não-consensuais e sem anestesia. As histerectomias continuam a ser performadas em massa em centros de detenção de imigrantes nos EUA contra a sua vontade. Há muitos outros casos, mas o problema está mesmo no facto de alguns corpos continuarem a ser o meio para remendar os corpos de outros.

 

EN: Os sintomas, no caso do ergotismo, manifestavam-se através de ardor nos membros, transe, alucinações, e até abortos espontâneos. Neste âmbito, procuras situar-nos perante o facto de, desde há muitos séculos, parteiras e médicos usarem ergot para acelerar o parto ou induzir o aborto. No entanto, é a própria medicina que, recorrendo ao uso dos escleródios para fins medicinais, continua a manter a desconfiança perante o uso terapêutico de plantas e certos tipos de drogas. É o corpo assim dominado por uma certa normalização ortodoxa da saúde sexual e pela colonização político-simbólica dos saberes clínico-ginecológicos que, por analogia, nos propões ser necessário submeter a uma reelaboração teórica?

 

DP: Sempre me interessei por plantas e cresci com esse conhecimento que me foi passado através de várias gerações na minha família. Quando voltei para Portugal e iniciei esta pesquisa, disseram-me que o ergot tinha tido muita importância na economia das várias regiões do norte de Portugal e da Galiza. Durante a guerra na Rússia e a guerra civil espanhola, Portugal ficou responsável por exportar o ergot globalmente para farmácias durante quase duas décadas. A fronteira de Portugal com a a Galiza foi muito importante na circulação deste recurso natural e pela proximidade com o porto de Vigo.

Foi fascinante aprender os nomes tradicionais que davam a este fungo em várias terras, os rituais agrícolas e canções de trabalho, o processo de exportação desta droga natural a corporações farmacêuticas internacionais, incluindo o laboratório Sandoz em Zurique, onde o LSD foi sintetizado, em 1943, por Albert Hoffman.

 

EN: Apresentas filmagens da biohacker Paula Pin, a trabalhar no seu laboratório, situado na Galiza. Podes falar-nos desta experiência e clarificar a operatividade singular destas  tecnologias ginecológicas? De que forma reivindicam outras subjectivações capazes de se libertar de dispositivos históricos naturalizados e universalizados em torno de classe, género e raça?

 

DP: Tive conhecimento do trabalho da Paula através de uma jornalista de Barcelona que é especializada em saúde sexual, direitos sociais e investigações criminais. A Paula Pin é artista e investigadora e desenvolveu um trabalho incrível de Ginecologia D.I.Y com um colectivo de biohackers nos arredores de Barcelona. Elas viviam numa comunidade cooperativa, numa espécie de colónia eco-industrial pós-capitalista situada numa antiga fábrica têxtil. Foi lá que desenvolveram workshops com o objectivo de descolonizar o corpo, explorando medicamentos vaginais e uterinos à base de plantas, lubrificantes D.I.Y e vários tipos de objectos mais ergonómicos, desde brinquedos sexuais a ferramentas ginecológicas impressas em 3D.

O biohacking tem uma história já muito antiga com o uso da medicina tradicional e de vários tipos de tecnologia, através da construção de ferramentas acessíveis a outras pessoas. A descolonização e acesso ao conhecimento, práticas DIY e práticas de cuidado (care) na comunidade são essenciais nesse trabalho. Quando contactei a Paula, percebemos logo que tínhamos imensos interesses em comum queríamos trabalhar juntas. Interessou-nos muito colaborar mas haviam muitas limitações durante a pandemia, por isso acabei por ir à Galiza conhecê-la pessoalmente e estivemos a fazer este vídeo durante uns dias, antes de Espanha entrar novamente em quarentena. O vídeo foi todo filmado dentro da carrinha da Paula, que é também o seu laboratório móvel. O ano passado foi bastante desafiante, pois não tive acesso a nenhum laboratório das instituições que me apoiaram neste processo, foi tudo feito por vídeo chamadas.

Conforme o acesso à tecnologia aberta cresce e os locais para experimentá-la proliferam, ela pode vir a fornecer alternativas cada vez mais viáveis.

Há muitas pessoas que não conseguem obter cuidados de saúde e tratamentos médicos de qualidade em virtude das barreiras criadas pela pobreza, diferenças culturais, identidade de género, raça, orientação sexual etc. O trabalho de biohacking pretende ajudar e criar ferramentas acessíveis a estas pessoas cujas necessidades provavelmente não serão atendidas pelo sistema de saúde existente em muitos países.

Existem vários projetos interessantes a decorrer como, por exemplo, o de um artista e biólogo americano que quer tornar o processo de tratamento hormonal mais fácil, usando plantas geneticamente modificadas, como o tabaco, para produzir estrogénio e testosterona. Também há outro projecto que está a criar insulina para pessoas com diabetes a partir de fermentação, sendo este um exemplo dos medicamentos mais caros nos EUA e com pessoas dependentes desse consumo diário. 

 

EN: A exposição é dominada pelo uso do vídeo, animação digital, desenho e narrativas visuais historicamente situadas. No entanto, a instalação sonora e a condição plástica da luz, assumem uma força estruturante, em torno das quais todos os outros elementos se unificam num espaço-tempo, diria eu, de calorosa intensidade afectiva. Apesar da força expressiva da luz, eram as palavras de Kounellis, a propósito de Caravaggio e dos poderes revolucionários das sombras, que me  vinham à memória enquanto circulava no espaço expositivo. Parece-me existir uma certa poética da obscuridade e até o apelo a algum silêncio que confere a este trabalho uma dimensão ritualizada. Por outro lado, neste projecto, o segundo no qual colaboras com o compositor e multi-instrumentalista Edward Simpson, divides a composição em partes que correspondem ao ciclo de vida do ergot. Queres explicar este processo e em que medida ele funciona como paisagem sonora que potencializa uma certa atmosfera de irrealidade?

 

DP: Quando desenvolvi o desenho expositivo com a Steffi Hessler, a curadora da exposição, pensámos logo na ideia de suspender todos os vídeos, desenhos e equipamento audiovisual, como o caso do som que é distribuído por muitas colunas. Interessou-nos muito a questão da gravidade e da característica imersiva do espaço, tanto a nível visual como acústico. Desde o início que tinha pensado em expor vídeos curtos acompanhados da iluminação filtrada e da paisagem sonora que ocupa a totalidade do espaço. As transparências do suporte dos desenhos e alteração da cor em várias partes da galeria foi algo que nos entusiasmou trabalhar, visto ser uma sala com uma forma triangular e muito longa.

É importante que as pessoas tenham oportunidade de ver e ouvir todas as obras durante a visita, daí que tanto os textos como as durações dos vídeos e do som sejam curtas e em loop, de forma a haver sempre oportunidade de apanhar uma história num determinado momento. A iluminação é um elemento nuclear nas minhas instalações e é pensada de forma conceptual de acordo com os símbolos e temperaturas que são pensadas para as várias obras. Interessava-me também a ideia de contaminação e artificialidade do espaço dependendo da zona e dos vídeos que estavam instalados.

A instalação sonora Drift acabou por ser o elemento desta exposição que sofreu mais transformações durante o ano passado. Foi um ano muito difícil para aceder ou desenvolver pesquisa em laboratórios e institutos devido à pandemia. Mesmo com tantas limitações, trabalhei com o micro lab do Técnico de Lisboa e a Faculdade de Ciências do Porto, para criar imagens que me pudessem ajudar com os desenhos e com o score para o som. Quando contactei o Ed Simpson para colaborar comigo neste projecto, pensámos numa paisagem sonora distribuída em 16 canais de áudio e que activasse todo o espaço da galeria. O Ed sugeriu trabalharmos com um sintetizador Buchla e eu queria experimentar também um módulo midi de bio-sonificação que capta sons e frequências diretamente dos fungos ou plantas.

A composição sonora foi pensada para três momentos e são sempre sons que se vão alterando no percurso da exposição, dependendo das obras que estamos a ver.

 

Diana Policarpo

Kunsthall Trondheim

Galeria Municipal do Porto

 

Eduarda Neves. Licenciada em Filosofia e Doutorada em Estética. Professora de teoria e crítica de arte contemporânea, área na qual tem vários trabalhos publicados. Curadora independente. A sua actividade de investigação e de curadoria cruza os domínios da arte, filosofia e política. 

 

A autora escreve segundo a antiga ortografia. 

 

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Diana Policarpo: Nets of Hyphae. Vistas gerais da exposição na Galeria Municipal do Porto. Fotos: Dinis Santos. Cortesia da artista e Galeria Municipal do Porto. 

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