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Filipa César: Spell Reel (2017)

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Sara Castelo Branco

É numa imagem em inverso que Spell Reel (2017) se dá primeiro a ver: observamos soldados guineenses revezados por entre os troncos de várias árvores numa perspectiva invertida de cima para baixo. Surgem depois as palavras: the kapok tree, sees the freedom fighters, upside down. Este primeiro movimento que se volta em sentido contrário, parece convocar um atributo particular do filme de Filipa César, relacionado precisamente com uma perspectiva em desvio de ordem, com uma outra possibilidade de visão sobre as imagens, que entre o revirar, o sobrepor ou o enviesar se encerra numa perspectivação plural sobre o legado dos arquivos e das memórias fílmicas da Guiné-Bissau. A dinâmica intersticial presente nestes primeiros planos reflecte-se, igualmente, numa comparência mais intrínseca desta árvore que observa os soldados, em português designada por mafumeira ou polião, e que tendo como constituinte a celulose, um dos materiais na base da composição inicial das películas fílmicas, vai convocar um sentido mais interno e vestigial do arquivo cinematográfico, que nesta obra carrega em si a ausência num sentido duplamente mnemónico e material: numa oscilação entre o visível e o oculto, entre o que está e o que esteve e não voltará a estar, mas mantêm-se enquanto desaparição na imagem. Partindo assim das materialidades e imaterialidades ligadas à exumação dos arquivos, Spell Reel fixa a ambígua definição inglesa da sua denominação, duplamente matéria e feitiço, unindo a bobina de cinema a um estado de encantamento que – como a ordem dúplice da primeira palavra da sua designação – passa também pela possibilidade de soletrar enquanto decifração, entendimento e re-leitura. Numa formação de múltiplas convergências imagéticas, cronológicas, espaciais e textuais, Speel Reel desenvolve uma reflexão colaborativa que reflecte sobre parte da História de Guiné-Bissau e do desempenho do cinema na inscrição da História, bem como sobre as contingências arquivísticas e conservativas da imagem em movimento – mostrando um arquivo em acção, que não apenas se move para a origem, como potencialmente para o futuro.

Spell Reel traça a passagem à longa-metragem de Filipa César, sendo o resultado de um projecto investigativo denominado por Luta ca caba inda (“A luta ainda não acabou”), que a artista iniciou em 2008, e que partiu do material filmado por Sana Na N'Hada, Flora Gomes, José Bolama Cobumba e Josefina Crato, com o apoio de nomes como Chris Marker ou Santiago Alvarez, e sob a ordem do líder revolucionário Amílcar Cabral que – ao conceber o cinema como uma produtiva ferramenta política na composição de uma nova História para o país –, organizou a viagem destes jovens a Cuba para aprenderem cinema de forma a documentarem a luta pela independência (1963-1974) e o consequente período pós-independentista (1974-1980). Inscrevendo-se na relação intrínseca entre o nascimento do cinema e o despontar da militância que marca comummente a circunstância dos primeiros filmes africanos, também a cinematografia guineense nasceu de um “imaginário de libertação” ideado por Cabral, envolvendo-se numa espécie de historicidade em acto, ou seja, no cumprimento de uma acção realizada para o futuro. Após o golpe militar dos anos 80, esse material permaneceu sem condições eficazes de conservação, restando agora apenas 40 das cerca de 100 horas de filme. Através do apoio do Instituto Nacional do Cinema e Audiovisual guineense, e de um trabalho colaborativo com N’Hada, Gomes entre outros (nas palavras da artista este é “um filme-coro, feito por e para várias vozes[1]), Filipa César trabalhou estas filmagens em ruína no Arsenal – Institute for Film and Video Art em Berlim, através de um trabalho de investigação, digitalização e difusão do material, que numa activação das potencialidades do arquivo resultou, por exemplo, na criação de um cinema ambulante que viajou por entre os locais onde os filmes foram originalmente rodados.

Num processo de alternância e sobreposição de diferentes temporalidades e espaços, Spell Reel desenvolve-se entre imagens realizadas na Europa e que mostram o manuseamento ou a apresentação da documentação e das imagens deste arquivo e outras filmagens feitas em África e alusivas à exibição dessas mesmas imagens num cinema ambulante que percorreu a Guiné-Bissau – ao mesmo tempo que apresenta um encontro dessas mesmas filmagens contemporâneas com os fragmentos do arquivo digitalizado, através de um processo de sobreposição, onde pequenas janelas trans-temporais são postas em relação com outras imagens. Manifestando assim visões dentro de uma visão, esta espacialização da imagem gera identicamente um possível nivelamento, não apenas de dois tempos no mesmo tempo, mas também na confrontação de um mesmo local no passado e no presente ou no contrapondo de estados diferentes da mesma imagem, ao colocar a forma fotográfica do fotograma em simultâneo com essa mesma imagem projectada. Desta forma, para além das ligações horizontais e de sucessão inerentes à montagem, Spell Reel revela-se também em profundidade, onde este processo de sobreposição inscreve outros estratos e sedimentações temporais e sígnicas para as imagens. Por outro lado, o filme de Filipa César compõe-se numa contínua “fuga para a frente"[2], que se efectiva igualmente por intermédio de um desfasamento, perceptível por exemplo numa dessincronização constante do som em relação à imagem; ou, pelo contrário, por um processo de permanência e resistência da imagem, onde as filmagens digitalizadas resistem sempre na passagem entre imagens, de um espaço a outro, deixando assim entrever nesse tempo vacilante um antes e um depois, um passado e um futuro. Estas oscilações parecem portanto citar uma História benjaminiana nas entrelinhas, onde a montagem fílmica é simultaneamente espaço da ligação, incisão, hiato e, sobretudo, de potencialidade deixada em aberto pelas imagens, pois como afirmou N’Hada num dos textos convocados no filme: “It’s easy to become obsessed with controlling images that we once produced accidentally, saying ‘that’s for history’. The image gives itself a new life, a new destiny, with or without us. It overcomes our guardianship”.

Indagando o início do cinema da Guiné-Bissau no momento da possível contingência do seu desaparecimento, o material de arquivo foi originalmente criado sob uma forma fragmentada – sendo justamente numa evolução fragmentária que também Spell Reel se vai revelando –, tendo sido encontrado num processo de decomposição, onde alguns dos seus filmes sofriam de uma degradação gradual conhecida por “síndrome do vinagre”. Trata-se, portanto, de imagens reveladas no momento processivo da sua desaparição material, expondo assim materialmente um desaparecimento do próprio objecto, bem como um possível apagamento mais imaterial dos seus sentidos conceptuais, mnemónicos e históricos. Ao usar o fragmento face à integridade e totalidade, a artista decidiu realizar um “arquivismo experimental"[3], tomando a forma das coisas conforme estas foram encontradas, ao apresentar as imagens, os seus espectros e o seu apagamento. Assumindo a destruição material como a própria inscrição do tempo na película, Spell Reel trabalha sobre um arquivo que grava a sua própria dissolução pelo contacto directo da matéria com o mundo. Esta comunhão entre o objecto e o meio físico que o rodeia pronuncia-se numa das imagens mais persistentes do filme, onde se vê um contacto directo e assimilado dos cabos de projecção com a terra e a vegetação guineense, convocando não apenas esse regresso terreno das imagens ao seu local de origem, como também esse nervo entre a realidade e o cinema, o passado e o presente.

Esta ausência ligada ao fragmento enquanto vestígio de uma totalidade, mas que detém identicamente um atributo de presença, por ser aquilo que resiste no substrato da imagem, parece rever-se particularmente na consideração critica que a artista faz da noção de arquivo, tratando o modo como as imagens foram registadas, mas também apresentadas, apagadas e resgatadas. Neste sentido, César parece propor uma perspectiva derridiana, onde o arquivo não remete apenas à memória e ao passado, mas abre-se para o futuro, para o que está por vir. Ao remeter para um retorno à origem que está porém sempre à espera do futuro, esta perspectiva do arquivo projecta-se nas palavras de Tobias Hering: “Re-evaluating the film production in Guinea-Bissau in the decade of decolonization - the 1970’s - is a collective rediscovery rather than a historiographic mission with a definite end. This is not only because every History contains an indefinite number of stories - as this film archive once again reminds us - but also because of the many blanks, insufficiencies and omissions represented by the archive itself."[4]

Partindo daquilo que Chris Marker escreveu no início de Le Tombeau d’Alexandre (1992), citando George Steiner: “não é o passado que nos domina; são as imagens do passado"[5]Spell Reel trata a visibilidade que se faz destas imagens do passado, que neste filme não são apenas mostradas imageticamente, mas também reveladas no acto da fala, ao serem narradas por N'Hada ou Gomes,  testemunhos que vão comentando as imagens, sublinhando a ambiguidade intrínseca do desfasamento da memória e do espaço de entendimento que separa o que se vê e o que se ouve. Por outro lado, ao serem projectadas no mesmo local onde foram filmadas, as imagens encontram-se com o presente, quer num sentido temporal, como geracional, através da introdução desta herança fílmica às audiências guineenses mais jovens. Desta forma, esta relação oral com as imagens permite não apenas uma re-transformação dos comentários de acordo com o contexto, como a convocação de um exercício constante no filme: o desempenho da tradução, no sentido literal e metafórico do movimento de verter uma língua na outra, de tentar compreender e transformar, aludindo assim a uma interpretação sempre activa e esquiva das imagens.

Ao trabalhar sobre imagens em ruína que inscrevem em si a própria visibilidade da passagem do tempo, Spell Reel realiza assim uma actualização das imagens no presente, desenvolvendo-se num trabalho de reflexão sobre a criação e a sobrevivência do cinema, da memória e da História, e cujas representações assomam aqui em construção, numa potencialidade que não procura preencher as ausências, mas antes afirmar esses mesmos interstícios como próprios de um devir intrínseco das imagens do passado.

Filipa César
Doclisboa 2017

[1] https://amiastudentsuva.wordpress.com/2017/03/08/berlinale-2017-spell-reel-archives-possible-practices-of-the-present/

[2] https://www.publico.pt/2017/02/09/culturaipsilon/noticia/filipa-cesar-no-laboratorio-da-militancia-1760706

[3] https://www.publico.pt/2017/02/09/culturaipsilon/noticia/filipa-cesar-no-laboratorio-da-militancia-1760706

[4] http://pismowidok.org/index.php/one/article/view/235/394

[5] « Ce n’est pas le passé qui nous domine. Ce sont les images du passé. »

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