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Sobre o percurso de arte pública do Festival Walk & Talk Açores

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Festival Walk&Talk 2017, Teresa Braula Reis, House for Ferraria, ©SaraPinheiro

Eliana Sousa Santos

O percurso de arte pública da mais recente edição do festival Walk & Talk Açores [W&T], foi comissariado pela plataforma KWY.studio—um colectivo de arquitectos, artistas e curadores dirigidos por Ricardo Gomes e James Bae—cujo nome evoca directamente as estratégias de colaboração do grupo de artistas que incluía Lurdes Castro, José Escada e Christo.

Os percursos de arte pública das edições anteriores do festival W&T consistiam principalmente em obras murais situadas no perímetro urbano de Ponta Delgada. Muitas destas obras ainda se podem visitar, como a que Vihls produziu no exterior da galeria Arco 8, durante a primeira edição do festival. Esta possibilidade expande a presença do festival através do tempo para além do intervalo em que acontece durante o verão. Assim, um passeio pelo percurso de arte pública é também um percurso pela história deste festival. 

A proposta de KWY.studio para o percurso de arte pública da actual edição do W&T disseminou as instalações pelo território de São Miguel, muito para além da área urbana de Ponta Delgada. O colectivo identifica na sua declaração de intenções três “tipologias espaciais” transformadas pelas instalações: a praça, o jardim e a paisagem. Encontramos quatro instalações na cidade: Medusa (Reflexo) de Ricardo Jacinto, no Campo de São Francisco; Gallery de JQTS, na pequena praça defronte ao Teatro Micaelense; Intermediário de Mark Clintberg, nas traseiras do mesmo teatro; e 2017 object_10 de Tomaz Hipólito em Santa Clara. Na Vila de Rabo de Peixe há o mural No more walls de SpY, no paredão do porto. E na Ribeira Grande, no exterior do Arquipélago, Centro de Artes Contemporâneas encontramos Azorean Spectrum Range de Akane Moriyama. No território alargado da ilha encontramos outras três instalações: Nordic Miniature de benandsebastian no Parque Terra Nostra; House for Ferraria de Teresa Bráula Reis na Ponta da Ferraria; e Variations of Yellow de Aylene Peressini na Lagoa das Empadadas.         

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Festival Walk&Talk 2017, SpY, Nomorewalls, ©Sara Pinheiro

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Festival Walk&Talk 2017, SpY, Nomorewalls, ©Sara Pinheiro

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 Festival Walk&Talk 2017, Baldios, Marsileaazorica, ©António Araujo

Desde 2016 que o festival W&T expandiu a sua área de acção no arquipélago, incluindo uma extensão em Angra do Heroísmo na ilha Terceira. O circuito de arte pública este ano também comissariado por KWY.studio, consistiu em três obras: o mural Ephemeral Volume 3 de Roberto Ciredz na antiga fábrica Pronicol; e em Relvão, Marsilea Azorica do colectivo Baldios e a instalação Mira de KWY.studio.

No artigo “A picturesque stroll around Clara-Clara”, publicado na revista October em 1984, Yves-Alain Bois analisa a obra Clara-Clara (1983) de Richard Serra instalada no jardim das Tulherias em Paris. O argumento central do artigo é criado a partir da ideia de passeio pitoresco em torno de uma dúvida de Serra sobre o que Robert Smithson disse de Shift (1971-72), “… [Smithson] falou da sua essência pitoresca, e eu não tenho a certeza do que falava.” Bois explica então que Smithson não se referia à definição comum de pitoresco como equivalente a pictórico ou pictural, mas à filosofia do pitoresco que presume um percurso num espaço mais vasto.

Smithson foi inspirado pelos filósofos do pitoresco que, no século XVIII em Inglaterra, pensaram no acto de caminhar, na paisagem ou em jardins desenhados para mimetizar o carácter caótico natureza. Richard Payne Knight, foi um desses filósofos que se interessava pelas sensações e pelo poder associativo dos espaços do jardim pitoresco. Este seria um espaço onde, através da caminhada e do movimento, o sujeito descobria vários elementos paisagísticos e arquitectónicos que sugeriam imagens evocativas de mitos ou poemas. Um passeio pitoresco também podia ser feito em áreas rurais que muitas vezes incluíam elementos reais, como pequenas casas de uma pobreza esquálida, que no entanto satisfaziam o prazer intelectual e estético dos viajantes; o que mais tarde foi caracterizado por John Ruskin como “… a crueldade do pitoresco.” 

Durante o ciclo de produção agrícola da laranja nos Açores, que se iniciou ainda no século XVI, estas eram produzidas essencialmente para exportação para países do Norte—incluindo Inglaterra—onde eram apreciadas pela sua raridade e associações às paisagens do Mediterrâneo. Imagino Payne Knight a receber a sua encomenda de laranjas dos Açores, e que estas despoletassem lembranças dos seus passeios pela Sicília onde dizia que “…copas de laranjeira cabeceiam com o fruto dourado”.

A paisagem de S. Miguel ainda manifesta os sinais das culturas passadas, da exploração de monoculturas agrícolas, da pesca e mais recentemente do turismo. E nesse sentido, o percurso pitoresco pelas ilhas é também um passeio que nos recorda o contexto histórico e social deste lugar. S. Miguel também teve os seus conoisseurs, o mais célebre terá sido José do Canto. Fundou o jardim botânico que hoje tem o seu nome, e ordenou a construção da capela de Nossa Senhora das Vitórias na Lagoa das Furnas, um monumento neo-gótico que cria uma paisagem que evoca as pinturas de Caspar David Friedrich. Também António Borges de Medeiros construiu jardins botânicos na ilha, incluindo o Parque Terra Nostra, que contém uma vasta colecção de espécies botânicas.  

O território de S. Miguel é propício aos passeios que evocam associações de ideias ligadas à arte, mas também a deambulações ligadas à história, em consonância com a atitude de Smithson nos seus passeios por Passaic, ou pelos lugares onde instalou as suas earthworks. O circuito de arte pública do festival W&T apresenta uma série de dispositivos que tornam aparentes o contexto histórico e social, assim como a construção de identidade deste território.         

Festival Walk&Talk 2017, Benandsebastian, ©FilipaCouto, Cortesia de Walk&Talk
Festival Walk&Talk 2017, Benandsebastian, ©FilipaCouto, Cortesia de Walk&Talk

Neste sentido, as obras Nordic Miniature de benandsebastian, Marsilea Azorica do colectivo Baldios e Mira de KWY.studio propõem um diálogo com o contexto histórico e identitário dos locais que ocupam. Nordic Miniature recorda-nos a relevância que as colecções botânicas tiveram em S. Miguel no século XIX, através da criação de uma vitrine-estufa com plantas oriundas do norte da Europa que foi deslocada para o Parque Terra Nostra o que evoca tanto a globalização colonial, como a época primordial “quando os continentes estavam juntos”. Marsilea Azorica apresenta uma reflexão sobre a protecção da identidade local num mundo globalizado através da identificação de uma espécie de trevo aquático que se pensava endémico da ilha e que foi recentemente identificada como natural da Austrália. Mira é uma estrutura construída em frente ao mar com a madeira local criptoméria, que evoca a forma de um sistema de armazenamento tradicional, a “burra de milho”; KWY.studio já tinha utilizado este processo de memorialização de uma tipologia local do passado através da sua recriação numa estrutura de madeira empilhada em Aarhus, Dinamarca (2015) e Cottesloe, Austrália (2016).

De outro modo, o mural Ephemeral Volume 3 de Ciredz, pintado numa empena das antigas instalações de uma antiga fábrica de lacticínios, cria uma paisagem pictural, uma imagem que faz parte de uma série mais extensa do artista que pretende representar a transformação de uma paisagem glaciar.

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Festival Walk&Talk 2017, Roberto Ciredz, Ephemeral - Volume3, ©António Araujo, Cortesia Walk&Talk

House for Ferraria de Teresa Bráula Reis e Variations of Yellow de Aylene Peressini são estruturas que pontuam a paisagem natural e evocam falsas ruínas, elementos catalisadores de associações de ideias também construídos nos jardins pitorescos século XVIII. Ambos são dispositivos de reenquadramento da paisagem. Variations of Yellow apresenta um objecto que altera o enquadramento visual da paisagem e que nos recorda a relação entre as ideias de pitoresco e pictórico. Já House for Ferraria apresenta uma estrutura que dialoga com uma constelação de ideias ligadas a este território—uma estilização de ruína que tanto evoca fragmentos de edifícios dilapidados, como as aspirações inalcançadas das fundações de casas inacabadas.

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Festival Walk&Talk 2017, Ayeleen Peressini - Variations of Yellow, ©Filipa Couto, Cortesia Walk&Talk

Nas praças de Ponta Delgada, as instalações Medusa (Reflexo) de Ricardo Jacinto e Gallery de JQTS são intervenções que evocam follies arquitectónicas. Medusa (Reflexo) ocupou o espaço hexagonal do coreto com uma estrutura paralela de tubos de aço suspensos que ecoam a paisagem sonora de uma performance de violoncelo de Jacinto. Há um paralelismo formal em Gallery, que também se configura numa estrutura de planta hexagonal, constituída por dezoito espaços de planta triangular que numa fase inicial da instalação compunham um labirinto. Tanto o labirinto como o gazebo hexagonal são tipologias comuns nos jardins pitorescos, que aqui ocupam o espaço urbano.

Em duas margens opostas da ilha de São Miguel encontramos 2017 object_10 de Tomaz Hipólito e No more walls de SpY, que são obras essencialmente em contraste. No more walls é um mural com esta inscrição no paredão virado para o mar, apenas visível da água, e estabelece um diálogo com realidades exteriores à introversão insular. Em oposição, 2017 object_10 faz parte de uma trilogia de obras baseadas na análise formal do tetrapod—a forma dos blocos de betão normalmente usados como barreira de protecção de erosão costeira.

As obras Azorean Spectrum Range de Akane Moriyama e Intermediário de Mark Clintberg tentaram estabelecer um diálogo com contexto social dos lugares que ocupam. Azorean Spectrum Range questiona a ideia de espaço público e privado no contexto urbano de Ribeira Grande, através da instalação de uma estrutura têxtil—tingida pela artista, apresentando um espectro de cores entre o amarelo e o laranja—que parece insistir em sair dos limites do espaço privado, mas exterior, do centro de artes. Intermediário propôs uma loja fictícia com serviços úteis—como acolhimento, manicure ou biblioteca—para os cidadãos invisíveis que ocupam uma condição liminar ou marginal naquela comunidade. 

A proposta curatorial de KWY.studio apresenta assim a possibilidade de realizar um passeio pitoresco pelas ilhas, apresentando uma constelação de dispositivos que enquadra a relação com o sujeito no contexto físico e histórico destes lugares.

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Festival Walk&Talk 2017, Teresa Braula Reis, House for Ferraria, ©SaraPinheiro

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Festival Walk&Talk 2017, Tomaz Hipólito, Object 10, ©Walk&Talk

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Festival Walk&Talk 2017, Tomaz Hipólito, Object 10, ©Walk&Talk

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 Festival Walk&Talk 2017, Mark Clintberg, ©Mariana Lopes

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 Festival Walk&Talk 2017, Akane Moriyama, ©Sara Pinheiro

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 Festival Walk&Talk 2017, KWY, Mira, ©António Araujo

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 Festival Walk&Talk 2017, KWY, Mira, ©António Araujo

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 Festival Walk&Talk 2017, JQTS, ©Sara Pinheiro

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 Festival Walk&Talk 2017, JQTS, ©Sara Pinheiro

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 Festival Walk&Talk 2017, Ricardo Jacinto, ©SaraPinheiro

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 Festival Walk&Talk 2017, Ricardo Jacinto, live concert, ©SaraPinheiro

Walk&Talk: Public Art Circuit

Curadoria de KWY.studio

(Ricardo Gomes com Gabriela Raposo e Miguel Mesquita)

14 - 29 Julho 2017, São Miguel e 29 Setembro - 5 Outubro 2017, Terceira

 

Eliana Sousa Santos

Eliana Sousa Santos é arquitecta, investigadora e docente. Em 2017, venceu a décima segunda edição do Prémio Fernando Távora. Comissariou a exposição A Forma Chã (Museu Gulbenkian), projecto associado da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2016. Foi pós-doutoranda visitante na Universidade de Yale em 2013/14. Investigadora em pós-doutoramento no CES, Universidade de Coimbra. É licenciada em arquitectura pela Universidade Técnica de Lisboa, mestre pela Universidade de Coimbra e doutora pela Universidade de Londres. É professora auxiliar convidada no Departamento de Arquitectura e Urbanismo do ISCTE-IUL.

 

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