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A metamorfose de um anjo caído

Phantom Limbs_DaedalusOverdrive.jpg
Susana Ventura

Sobre a exposição de Karlos Gil “Phantom Limbs” na Galeria Francisco Fino

O anjo - figura-imagem divina, ser perfeito, sem género, que não conhece o erro, nem o desvio - cai e, na queda, ocorre a sua transformação, deixa de ser anjo, mas conserva, em si, um fragmento dessa sua existência anterior, assim como a força gravítica do abismo e da queda numa luta interior com a sua forma actual e desviante. Seria muito redutor pensar que as obras de Karlos Gil se constroem, apenas, na deslocação e alienação de contextos originais (desde a reutilização de objets-trouvés aos processos de investigação, que estão por trás das suas obras, e às referências que estes revelam: Wojciech Jastrzebowski, Joseph Marie Jacquard, Benjamin Cheverton, Gilles Deleuze & Félix Guattari, entre outros) através de operações básicas de composição estética, como a abstracção, a fragmentação ou a ampliação, quando agregam vários espectros (no próprio sentido fantasmagórico, também) de realidades distintas. Por conseguinte, não serão, igualmente, as grandes oposições - natureza e tecnologia, passado e futuro, significado e significante - que estabelecem diálogos internos no seio da composição da própria obra, como externos na relação com o observador, uma vez que a metamorfose (e esse colapso do tempo, forma e matéria, nos quais a obra é criada e cria) entretece nos fios da sua constituição todos esses elementos, aparentemente irreconciliáveis e irredutíveis entre si, gerando uma nova narrativa, uma nova entidade, onde não se procura quer um sentido original, quer uma leitura apaziguante sobre a situação contemporânea e a esperança no futuro. A obra não pretende, de modo algum, resolver o combate constante entre esses pólos, mas apresentar um mundo onde co-existem de forma bela (porque as obras de Karlos Gil têm, também, essa aura de uma beleza clássica).

"Daedalus' Dream" (I, II, III, IV, V). Cobre, latão, prata, aço, plinto de microcimento. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Daedalus' Dream" (I, II, III, IV, V). Cobre, latão, prata, aço, plinto de microcimento. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Daedalus' Dream" (I, II, III, IV, V). Cobre, latão, prata, aço, plinto de microcimento. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Daedalus' Dream" (I, II, III, IV, V). Cobre, latão, prata, aço, plinto de microcimento. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.

Nesta beleza, encontramos um outro lado da metamorfose e, no mesmo movimento da queda, a criatura mítica alada, que se eleva acima da natureza, transforma-se em algoritmo conservando o apelo doce e quente (no tecido, que apetece tocar). Trata-se, não só como Jacques Rancière diria, da “restituição de um espaço háptico: um espaço de conexão do ver e do tocar num mesmo plano,” como da construção de um espaço virtual entre corpo e objecto. Utilizando um tear de jacquard, um dos primeiros instrumentos a utilizar cartões perfurados para programar padrões, os mesmos que, anos mais tarde, permitiram à IBM desenvolver uma versão primitiva do computador moderno, estas telas de tecido, na sua diferença e repetição, formam paisagens abstractas, cidades indiferentes de pessoas-números ou binários 0-1 e, no entanto, exigem uma aproximação, uma certa complacência. Nas primeiras obras de Stay Gold, datadas de 2015, as imagens reproduzidas correspondiam a blow-ups de motivos naturais (à semelhança dos primeiros jacquards que reproduziam motivos dos bosques ingleses), acentuando a coexistência de dois mundos considerados opostos: o natural e o tecnológico. Nas mais recentes em exposição, existem, somente, reminiscências dessas imagens, de um crescimento exponencial e infinito de zoom-outs sucessivos, levando-nos ao outro lado do mundo conhecido, a uma visão de um universo infinito da criação, enquanto efectuam, em simultâneo, um movimento contrário, quase interino, até à matéria última de que os corpos são compostos: finos tecidos, também, eles passíveis de serem programados (um dia).

"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
"Stay Gold" (I, II, III, IV, V, VI). Tapeçaria em jacquard, fio prata. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.

A metamorfose é, certamente, uma forma de resistência à morte, uma reinvenção de outra forma de vida e, nesse sentido, uma resistência ao presente, que deixa de existir enquanto tempo linear. À semelhança dos contextos originais, o tempo é engolido e alienado. Tanto em Redundancy (de-extinction), como em Daedalus Overdrive, o acto de coleccionar que precede a obra (ora néons de anúncios publicitários de lojas de rua de Hong-Kong, ora estatuária automóvel) poderia ser compreendido como um acto rememorativo; na primeira obra, de uma tecnologia em desaparição que, curiosamente, pode ser reanimada (insuflada com outro sopro) através de uma nova tecnologia (LED); na outra, de um ideal de progresso construído a partir do desejo constante do homem em desafiar a natureza e alcançar o impossível (donde o título evoca o mito de Dédalo), contudo desaparece com a composição estética, a qual, simultaneamente, efectua a destruição desse tempo, que a obra poderia rememorar, e a do próprio significado. Interessantemente, no espaço da galeria, os néons definem, ainda, e constituem-se como limiar. Em Daedalus Overdrive, por exemplo, as pequenas esculturas de criaturas fantásticas que, inevitavelmente evocam os desejos aerodinâmicos da mecânica automóvel, expressam na imobilidade que lhes é imposta - acentuada pelo bloco compacto do embasamento que as sustém -, um movimento veloz: parecem balas, rockets. Mas são, também, a expressão de um devir-pássaro do homem e da beleza delicada e frágil das asas de penas e cera construídas por Dédalo. Como a que apreendemos no excerto de Ovídio:

“Entretanto, Dédalo odiava Creta, odiava o longo exílio,
morto de saudades da terra natal. O mar aprisionava-o.
“Embora ele barre o meu caminho com as terras e o mar”,
disse, “ao menos, o céu está sempre aberto. Iremos por aí!
Minos pode ser dono de tudo, mas não é dono dos ares.”
Assim dizendo, aplica o seu talento a artes desconhecidas
e revoluciona a natureza. De facto, dispõe penas em filas,
[começando pelas mais curtas, a curta seguindo a longa]
a ponto de se julgar crescerem num declive: assim cresce
gradualmente a flauta campestre com as suas canas desiguais.
Depois, prende-as a meio com um fio e a base com cera,
e, tendo-as assim prendido, dobra-as em suave curvatura
para imitar as aves verídicas.” 

(Metamorfoses, Ovídio, livro VIII, tradução de Bocage)

Na mesma sala, encontram-se, ainda, três espelhos cujo desenho é inspirado na Art Déco, mas gerado pelo mesmo sistema binário que está na origem das telas de jacquard. E, à semelhança destas, os espelhos remetem-nos para o nosso corpo ou, mais especificamente, para o nosso rosto que se vê no espelho como um Outro - essa heterotopia foucaultiana - ou, neste caso, porque existe esse recorte abstracto de um rosto que não é o nosso, vemos, na sua superfície, todos os outros rostos que estão em nós. Curiosamente, enquanto nas outras obras, poderíamos equacionar a existência de um certo historicismo, embora preferíramos pensar numa história paralela ou virtual no sentigo bergsoniano do tempo e da memória, de um acontecimento passado cujas partículas afectam um presente de forma misteriosa e não linear; nesta obra, poderíamos, igualmente, pensar como o rosto e o retrato, intimamente ligados ao espelho, atravessam toda a história da arte. 

A expressão Phantom Limb, em Inglês, tem, precisamente, esse significado: aquele(a) com membros amputados que experiencia, frequentemente, a sensação de possuir ainda esses mesmos membros. Sente-os na sua carne e vive-os como parte de si. Todas as obras presentes na exposição detêm esse poder oculto de fazer coexistir, na sua existência, tempos distintos, histórias paralelas e virtuais, velocidades diferentes, forças e movimentos contrários, ritmos de cor e luz, de cheios e vazios. A última metamorfose é sempre a do observador que, na obra, se sente, também, corpo fantasma. 

Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.
Karlos Gil,
Karlos Gil, "Phantom Limbs". Vista geral da exposição. Cortesia do artista e Galeria Francisco Fino.

Susana Ventura

(Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia/Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). 

Karlos Gil
Galeria Francisco Fino

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