14 / 21

Hugo Canoilas e Antónia Labaredas: Ó aranha! Grande aranha! Trazes a cura, aranha?

12.jpg
Susana Ventura

O tempo da revolução nas asas de uma borboleta

- Sobre a exposição de Hugo Canoilas e Antónia Labaredas Ó aranha! Grande aranha! Trazes a cura, aranha?

Não existe cura alguma pela obra de arte, mas a aranha revela-se uma curiosa anfitriã... Aranha, a obra que enuncia a exposição recente de Hugo Canoilas e Antónia Labaredas na Galeria Quadrado Azul em Lisboa, mostra uma aranha capturada por um copo de vinho, um gesto que nos é familiar se pretendermos devolver a aranha à vida, contudo, neste caso, a captura da aranha e a sua exposição numa prateleira suspensa são os primeiros sintomas de que algo está para acontecer: Ó aranha! Grande aranha! O que escondes, aranha?

Il Trionfo della Morte define um umbral. Transpor este limite, que é também o fino fio entre a vida e a morte (da aranha capturada e da cura prometida), implica uma aceitação prévia do que está para vir, do desconhecido, da possibilidade de uma antevisão que nos é dada a ver (e a pensar), simultaneamente um desafio, que tem os seus perigos e a partir do qual não deveríamos regressar os mesmos, e um compromisso de alteração, de mudança… “Como se a efectividade de uma partilha, e a sua verificação, contasse mais do que uma garantia de sobrevivência”, como escreve Bernard Aspe, para descrever a situação drástica da personagem principal do filme Take Shelter de Jeff Nichols, no seu texto Mais tarde é agora, que tem estado presente em diversos momentos da produção artística de Canoilas e que esteve na origem da presente exposição.

O tempo, em Aspe, tem uma dimensão política. É o tempo da resistência e da revolução que, para nós, coincide com o tempo da obra de arte. Aspe começa por recorrer ao princípio de individuação postulado por Gilbert Simondon para explicar a interpretação deste da “flecha do tempo” que corresponde, ao contrário do Chronos (a passagem do tempo cronológico que estabelece um passado, um presente e um futuro), a uma virtualização do futuro que existe em potência no presente, que poderíamos igualmente pensar como Aiôn, o tempo intensivo (aquele da obra de arte, também). O princípio da individuação de Simondon afirma-se como uma alternativa à oposição clássica entre forma e matéria, em que o indivíduo formado (matéria) é contemporâneo da sua individuação (forma) e ambos se constituem mutua e contemporaneamente a partir das forças, que ocorrem no plano por eles formado, distribuídas através de um modelo dinâmico que Simondon designa por modelação (interacção das diferentes energias e materiais que conduz à individuação). A modelação, em Simondon, é o que, de facto, explica a “flecha do tempo” e o momento presente, que Aspe caracteriza cruzando com a ideia de Zygmunt Bauman de “sociedade líquida”. Nesta, os indivíduos “não estão totalmente comprometidos com a vida que está efectivamente em curso: esta nunca está definitivamente estabilizada, é sempre susceptível de reconfigurações mais ou menos radicais” (Aspe). A vida e o presente são entendidos como matérias moldáveis, apropriáveis e abertas a um futuro imanente do plano de forças (o presente enquanto potência de devir) ao qual deveremos responder.

Habitar o presente é o que nos dá uma alma (a alma nasce quando a flecha do tempo reencontra a sua direcção: “do futuro em direcção ao passado, através do presente”).

O título do texto de Aspe não tem nada de catastrófico, porque implica acolher o futuro no devir do presente, incluindo o impensável e o inimaginável (o devir nunca é predeterminado, o que transformaria este acolhimento numa espera, como Aspe, também, refere), o que, de certa forma, nos leva a atravessar Il Trionfo della Morte com uma tranquilidade paradoxal, imaginando que dificilmente poderá existir alguma cura e que a inquietação será uma reacção natural da nossa espécie quando confrontada com esse mundo que espreita.

No umbral transborda um manto viscoso e espesso de cor lamacenta que apanha tudo, engole, dissolve, desfaz e fossiliza todos os resquícios da acção violenta do homem sobre a superfície terrestre. O jogo figura-fundo adquire uma espessura onde dicotomias prévias e estáticas (a estrutura determinista engoliu-as há muitos anos atrás), como industrial-natural, orgânico-artificial, formam um sistema metaestável, em que, por diversas vezes, as obras de Antónia Labaredas surgem em pontos de tensão máxima num equilíbrio instável, perto do limiar do colapso: uma figura-búzio [1] periclitante numa viga sobre um balde ou uma figura-ostra na intersecção de dois planos, o vertical de uma borboleta comida por formigas e um horizontal flutuante ou suspenso no tempo. A oposição cromática entre a cor opaca da lama, criada por Canoilas com vários componentes e pigmentos inorgânicos, e as subtis variações dos corantes cerâmicos e do crês não deve, por isso, ser entendida como a afirmação de um mundo habitado por uma espécie que sobrevive ao fundo tóxico, mas como a transmutação das formas pela acção das forças que definem esse meio que já não é natural, existindo, inclusivamente, a possibilidade de co-existência de algumas formas geométricas como a figura-peão ou a figura-hexágono. Canoilas fala de fragmentos de resistência, devendo ainda ser compreendidos pelo próprio princípio de individuação de Simondon em que o molde e o moldado actuam um sobre o outro, gerando-se em simultâneo a partir do plano de forças que originam num estrato de tempo, como sucede, quase de forma literal, em Metamórfica de Labaredas.

As peças desta artista concretizam a flecha do tempo a que Aspe se refere: nelas encontramos uma actualização da potência do presente em futuro, permitindo-nos uma aspiração de esperança.

Do chão, liberta-se, igualmente, um plano animal que sobe pelas paredes que os quadros desenham, virtualmente, no espaço. Os quadros, de costas voltadas, empurram-nos para o seu próprio espaço, delimitado por um campo de forças, que deles emana, imprescindível ao nosso confronto com eles, porque ferem, ferem o olhar com a cor intensa, propositadamente viva, que parece soltar-se do plano bidimensional da tela com a sua escala sufocante, colocando-nos num combate de um para um pelo qual devimos-animal, animal sobrevivente de muitos outros combates, animal que sofre. O devir-animal pode ser compreendido, igualmente, a partir do princípio de individuação, não no sentido da percepção fenomenológica, de uma perspectiva a partir da qual olhamos como um animal ou olhamos o animal que nos contempla devolvendo-nos um olhar animal, mas a partir de um plano de forças que se cria entre nós e o quadro, dissolvendo esse limite entre indivíduos e animais, fazendo-nos sentir no corpo ora todos os animais antepassados que fomos, ora a dor das asas corroídas e da carne esquartejada… Seguindo Simondon (e Deleuze a partir de Simondon), a especificação advém de uma intensidade, como podemos entender as manchas informes e vagas de cor que se espraiam pelas superfícies do quadro. Em Borboleta comida por formigas devimos-animal pela cor, ou melhor, é a cor que devém-animal e nós, pela cor, devimos-borboleta. Canoilas refere que estes quadros propõem um regresso a nós próprios, onde compreendemos um regresso às forças de individuação exteriores a todas as hierarquias e estruturas definidas, um regresso ao plano animal que nos atravessa, também.

Neste regresso, compreendemos o sentido político presente na própria exposição. Esta não apresenta qualquer formulação fatídica sobre a acção dos homens na superfície terrestre, nem constrói cenários apocalípticos e utópicos, mas, retomando o texto de Aspe, propõe nesse regresso o encontro dos dois tempos que este autor define, por último, no seu texto: o tempo da individuação colectiva, que nos devolve o futuro enquanto potência do presente, e o tempo dos sujeitos da economia (do determinismo, das estruturas e das hierarquias estáticas). A simultaneidade destes dois tempos incompatíveis cria, para Aspe, um terceiro tempo, o “tempo revolucionário”, onde actua, para nós, a obra de arte. A obra de arte não traz a cura - nem a aranha - mas realiza o que Aspe deseja para si e para todos aqueles que pensam a partir do conflito entre os dois tempos, trazendo a revolução para o limiar da “irrupção do futuro”.

Susana Ventura

(Coimbra, 1978) Arquitecta de formação (darq-FCTUC, 2003), contudo prefere dedicar-se à curadoria, à escrita e à investigação, cruzando diferentes áreas do conhecimento. Gosta de pensar sobre arte, arquitectura, fotografia, cinema e dança, e ensaiar, ora em textos, ora em exposições, outras possibilidades de pensamento. (Por isso, também, doutorou-se em Filosofia, na especialidade de Estética, FCSH-UNL, 2013, sob orientação científica de José Gil). Recentemente, foi co-curadora de “Utopia/Distopia”, no Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia de Lisboa (MAAT). 

 

Hugo Canoilas

Antónia Labaredas

Quadrado Azul

[1] Estas denominações são da nossa autoria para “aludir” às obras de Antónia Labaredas.

01
11
08
23
15
13
05
16
10
14
22
02
21
17
19
Voltar ao topo