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João Seguro

Ana Hatherly: Território Anagramático

Publicado pela Documenta a propósito da recente exposição que teve lugar na Fundação Carmona e Costa, Território Anagramático é um livro que regista e trabalha as hipóteses dos cruzamentos que emergem da escrita e da performatividade como reflexos do modelo da atividade artística de Ana Hatherly.

João Silvério, curador da exposição, tem sido um dos mais ativos intérpretes e divulgadores da muito vasta obra de Hatherly, e este volume é uma contribuição de peso para a descodificação dos vários aspetos trans-disciplinares que a autora cultivou na sua obra artística, que, tendo sido obviamente um dos principais focos da sua carreira, não esgotou a sua fértil produção.

O livro é abundantemente ilustrado e, por ser uma obra pictórica e gráfica profundamente ligada à escrita, torna-se necessário que assim seja. Essa prerrogativa parece ser uma das principais motivações de João Silvério, que de resto confirma no seu conhecedor texto essa condição da obra da autora. Se muita da obra de Hatherly parte da escrita verbal para a visualidade, seria natural que uma mostra como esta e respetivo acompanhamento bibliográfico, fizessem primeiro que tudo, uma revisão fotográfica dos materiais artísticos que, em muitas ocasiões, não tiveram o necessário entendimento háptico que mereciam, sendo por isso muitas vezes (e injustamente) relegados para o campo da literatura. É certo que os livros, a dimensão literária e a legibilidade do texto e da imagem foram muitas vezes o topos da obra de Hatherly, mas o que acontece nestas primeiras cinquenta páginas do livro é uma tentativa de resgatar para o mundo táctil, para o universo evidente das artes visuais, obras que nem sempre tiveram a oportunidade de ser pensadas desta forma.

Reconhecemos que a obra de Hatherly é diversa e a sua proveniência radicada na experiência poética da linguagem que é transportada para um campo que é o campo da visualidade.

João Silvério assinala no seu texto que a obra de Hatherly “confronta-nos com um território visual e poético em que o itinerário se faz da escrita para o signo e do signo para o desenho que se transforma em imagem e regressa à escrita como se de um processo de ocultação/revelação se tratasse.”. Não podemos fazer outra coisa senão seguir este procedimento que nos permite, ao passar em revista as imagens que nos dão conta da exposição e que ocupam a primeira parte deste livro, observar essa mecânica nos procedimentos heurísticos da autora. Ou pelo menos sentimo-nos impelidos a dar-lhes razão e a percorrer de novo os desenho como se eles fossem perfilhados da escrita e quisessem afirmar a escrita e as suas formas de fazer, como legítimas acomodações do processo criativo das artes ditas visuais. Mas o que aqui está em causa poderá não ser o visual, pois o visual não é sempre o domicílio razoável do pensamento, e os livros serão o que mais aproxima o pensamento de Hatherly de uma performatividade da linguagem que é meta-visual. E essa dimensão está contemplada no livro, com estava na exposição, pela forma insistente pela qual o curador colocou no centro nevrálgico dos materiais expostos, os livros de/da artista, que afirmam tão solenemente esse enigma criativo.

O que vem antes da escrita? E esta dimensão lúdica também é contemplada por João Silvério, que enuncia a consciência da noção de jogo que perpassa a obra de Hatherly, que a artista cultivou sem medo que esse prazer lúdico menorizasse a complexidade da sua obra, mas que precisamente a afirmasse como a característica morfológicamente barroca que tanto a interessou. Pois são as Tisanas e toda a arte poética, que João Silvério sugere serem o eixo fundamental para a organização da exposição e que Maria Filomena Molder sublinha no seu ensaio-poético de título também ele anagramático e enigmático – ana soberana ou LER NO AR – ser de onde é exequível extrair o património estilístico e recursivo que, ao constituir a sua fala, constitui a gramática através da qual encripta, sob a capa da poesia, toda a sua atividade, experiente e pensante. Como se essa atividade precisasse de ter uma vida clandestina - “observamos na transformação de letras e palavras em imagens, sobrepostos a ascese e o excesso”- para que essa atividade poética pudesse sobreviver num mundo poético sem fronteiras, como o ar que “o poeta” Ana Hatherly respira.

Prosseguimos pelo livro, as imagens sucedem-se num deslumbre que nos permite deter o olhar em  reproduções que em muitos casos têm praticamente a escala exata, noutros aproximada, das imagens originais que nos foram mostradas na exposição, e permite-nos olhares demorados nos aspetos caligráficos, organizações, estruturas e ritmos desta louca escrita. Há um rigor no registo fotográfico destas imagens que traduz o detalhe, o pormenor e a dobra como os campos privilegiados do desenho, e este, como um “espaço invadido pela escrita” nos limites do inteligível.

Enquanto observadores sentimo-nos incompletos se não formos tentativamente leitores, enquanto leitores somos constantemente assediados pela visualidade que segundo Fernando Aguiar, no seu texto “A visualidade na escrita de Ana Hatherly” e onde, citando a autora, descreve os processos de construção de diferentes graus de legibilidade do texto que abria portas à construção de significados. Aguiar debruça-se sobre os processos que levaram Hatherly a construir uma obra alicerçada nessa charneira entre a literatura e a visualidade gráfica enquadrando-a em várias modalidades e modelos artísticos próprios das várias épocas pelas quais a artista passou, articulando as particularidades da sua obra escrita, para ser literalmente lida, e a sua obra visual, muitas vezes entre um lirismo inabalável e um experimentalismo assumidamente pictórico, ou, como o autor o coloca: “na sua essência foi a escritora que procurou dar uma dimensão plástica à poética, potencializando as palavras que ganhavam outra expressividade pelo modo como eram (d)escritas e dispostas na folha.”.

Contextualizada a obra de Hatherly em três textos que tão bem declaram a perspicuidade racional da função poética em relação à intensidade visual e táctil da família de obras aqui reproduzida, adjuvados pelos curtos mas pragmáticos textos de Andreia Poças, que sintetizam a funcionalidade de algumas obras reproduzidas, e logo temperamos o nosso debelar às linhas, pontos e formas com a impudência original que nos fala de uma escrita que lá não está. E não está porque se a escrita e o desenho ou a pintura pertencem a universos diferentes, a obra de Hatherly existe para provar que estes, por vezes, estão contidos uns nos nos outros, às claras, a aguardar que decifremos a mais óbvia de todas as constatações.

Documenta - Sistema Solar

Ana Hatherly
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Carlos Vidal: Invisualidad de la pintura – Una historia de Giotto a Bruce Nauman

 

Carlos Vidal é um dos mais prolíficos teóricos de arte nacionais e a sua incessante atividade teórica tem sido acompanhada por igualmente insaturável vontade editorial e disposição pública.

Em Portugal conta já perto de uma dezena de volumes publicados em nome próprio, mas a amplitude e complexidade temática da sua obra recente já lhe valeu a 3a edição da obra Deus e Caravaggio – A Negação do Claro-escuro e o Nascimento dos Corpos Compactos em Espanhol (por cá já tinha sido publicada pela Vendaval em 2011 e reeditada pela Imprensa da Universidade de Coimbra em 2014).

Agora, uma edição Espanhola do seu último livro (publicado em Portugal em 2016 pela Fenda) Invisualidad de la Pintura – Una História de Giotto a Bruce Nauman em dois tomos. No total soma 1107 páginas, esta versão da Brumaria, editora Ibérica a quem Vidal tem estado ligado. Apenas disponível em Portugal na livraria da Culturgest que distribui este livro em exclusividade, esta edição aprimora aquilo que já era evidente na primeira edição Portuguesa: uma obra de enorme fôlego histórico e teórico, que se propõe a dissecar um conjunto de movimentações que operaram no contexto das artes visuais a partir da idade média tardia e desembocam na contemporaneidade, que dizem respeito a uma característica determinante para a identificação da sua condição pensativa: a invisualidade.

Vidal é lacónico na introdução do primeiro volume ao afirmar que “o presente estudo, de novo considerando o seu título, ao apontar um conceito determinante para a definição daquilo que é proposto, vincula-se a uma argumentação em torno desse conceito, mas também de conceitos afins e outras distinções oportunas. De outro modo, talvez mais do que determinar as marcas invisuais na pintura, pretende-se descrever a pintura (toda a pintura) como coisa invisual (…) será proposta uma distinção entre invisual (ou invisualidade) e invisível (ou invisibilidade); desenvolvendo ainda mais, o invisual será apartado do visível e do visual; concluindo, o invisual diverge equidistantemente do visual, visível e invisível – quatro tópicos de particularização decisiva...”.

Este concisão introdutória não é de todo a assinatura de Carlos Vidal, a quem conhecemos uma grande predisposição para longas tiradas argumentativas e neste caso, a um encadeamento de ideias que pela complexidade e alcance têm de ser compartimentadas em capítulos e subcapítulos que permitem ao leitor a sua utilização como estrutura divisória da tessitura argumentativa proposta. E que importantes são as partições propostas por Vidal, que nesta edição contam logo com uma grande diferença em relação à primeira edição portuguesa, num único volume, e que aqui se apresenta dividida em dois volumes que explicam à partida o intuito de cada uma das partes da investigação. Ora neste primeiro tomo da edição espanhola, que corresponde ao que na anterior versão se chamava de parte I, temos um livro composto por cinco capítulos, subdivididos em sessenta e sete unidades nas quais Vidal discorre acerca do tema da Verdade. E é verdadeiramente espantoso o itinerário que nos oferece, tentando (e aqui a palavra tentar não serve para iludir o modo e o ritmo a que Vidal escreve – os ritmos da escrita e o fôlego das frases longas e sinuosas acompanham o aparato do conteúdo) oferecer-nos interações temáticas e conceitos que  permitam arrazoar a noção de verdade, ou as noções de verdade – porque aqui passa-se da filosofia e da literatura à matemática e à religiosidade, regressando sempre à arte, ou nunca saindo verdadeiramente do seu território.

De Aristóteles e Platão a Badiou e a Heidegger, dos livros do Zohar a Peirce e daí a Gödel até chegar a Shklovski, tudo é sujeito a ser convocado por Vidal para esta grande reunião (a escrita de Vidal é panteísta) que tem como objetivo explicar que a Verdade é uma categoria transitória sujeita a modelações ontológicas (disciplinares).

E que a arte se relaciona com esta noção através da admissão de uma ontologia poética que apenas existe num nexo de produção infinita de representações, ou seja, de verdades. Este primeiro livro serve assim para nos preparar metodologicamente para o que nos é proposto no segundo livro, composto por duas partes: uma primeira dedicada à Invisualidade, e uma segunda onde Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Manet, Duchamp, Vito Acconci ou Bruce Nauman são trabalhados, ou melhor, evenementalizados, para usar um neologismo tão caro a Vidal, que sistematiza a possibilidade de cada um destes autores, através de obras chave como, A vocação de Mateus, Ressureição de Lázaro, O Aguadeiro de Sevilha, Etant donnés ou Raw Materials, poderem na sua essência conduzir a uma explicação do acontecimento pictórico enquanto categoria litigante da visualidade.

Terminamos, e a leitura destes dois livros não termina nem se completa, antes inicia-nos numa conversa infinita com definições, conceitos, articulações e autores, que por agora mantém a questão da prática artística em aberto, pois essa será a sua verdadeira natureza. Tal como o aforismo de Heráclito, que Vidal cita no frontispício de um capítulo sobre Arte e Verdade, que evidencia o seguinte paradoxo: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.”. Assim é a condição visual ou ótica da história da arte proposta por Carlos Vidal.

Livros Fenda

 

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Isabel Nogueira: L’Image dans le cadre du désir. Transitivité dans la peinture, la photographie et le cinéma

 

Isabel Nogueira é uma autora que, a par da crítica de arte e da docência, muito regularmente se tem dedicado à escrita e publicação de assuntos da teoria da arte. A Imagem no Enquadramento do Desejo - Transitividade em Pintura, Fotografia e Cinema, livro de que agora damos conta, foi publicado em Portugal em 2016 pela BookBuilders/Letras Errantes e acaba de sair em tradução francesa de Didier Sarnago pela reputada editora L’Harmattan.

Como explica a autora logo na introdução do volume, o objetivo deste livro é uma inquirição acerca das mudanças de estatuto da imagem ao longo dos tempos, numa ancoragem decididamente histórica e estética, que permita encontrar as linhas de continuidade e rotura entre imagens de natureza pictórica, fotográfica e cinematográfica. Isabel Nogueira deixa claro para o leitor que esta sua proposição dos assuntos da imagem tem como objetivo interpretar as histórias e as migrações disciplinares que provocou e sofreu, de forma a reconhecê-la como um topos de extensão, abreviando a sua condição expandida face a outras práticas imagéticas não artísticas.

O livro divide-se em quatro capítulos que demonstram desde logo uma radical ancoragem das práticas da imagem no contexto da imagem pós-fotográfica: no primeiro capítulo, de título - Aura, punctum e fundamento emotivo da imagem instantânea –

Nogueira aborda as conceções de imagem desde uma proto-história da consciência do conceito de imagem, através de uma antropologia da imagem artística, que a leva a uma constelação de ideias chave como representação, dissimulação e exteriorização do mundo visível e imaginável.

Passando por autores absolutamente relevantes para o tema: de Alberti a Belting, de Merleau-Ponty a Danto, Isabel Nogueira começa por apresentar-nos esta história pré-fotográfica da imagem para nos introduzir a um momento histórico em que a fotografia e os regimes fotográficos de pensamento e produção de imagem começam a dominar as estruturas ocidentais. E aqui Nogueira recorre a autores como Benjamin, Barthes e Baudelaire, ao complexo Barthesiano que coloca a imagem fotográfica no centro da hipótese de produção de imagem e de afetação pela imagem e explica-nos, à guisa de conclusão que: 

“a imagem situa-se num duplo enquadramento do desejo: de quem a produz e de quem a olha. Há uma profunda relação entre imagem e desejo de ver, na medida em que se vivencia a plasticidade deste último, num jogo entre presença e ausência, entre visível e invisível, verdade e dissimulação, etc. O desejo relaciona-se sobretudo com a imagem e menos com o objecto/real, porque há fantasia e elaboração.”.

Num segundo capítulo volta à pintura - A pintura que deseja o cinema e o cinema que deseja a pintura – para nos dar conta de um regime de intermitências entre as duas linguagens imagéticas que se cruzam em ambos os meios de expressão e que tão bem resume na citação de Rohmer que nos explica que:

“O espaço, ao contrário [do tempo] parece ser a forma geral de sensibilidade que lhe é [ao cinema] verdadeiramente essencial, na medida em que o cinema é uma arte da visão. Do mesmo modo, as obras comummente designadas de cinema puro – os filmes de vanguarda – encontram-se conectadas, sobretudo, às problemáticas de expressão plástica.”

Para nos dar conta desse parentesco dilacerante e desejante de que Nogueira nos vai explicando e exemplificando e que é de resto concebível, como explica a autora por: 

“uma clara conexão plástica e conceptual entre todos estes movimentos modernistas e vanguardistas, nas suas obras pictóricas e fílmicas, o que constitui uma aproximação conceptual e plástica entre pintura e cinema, numa evidente transitividade imagética.”.

Mas Nogueira não reduz a sua investigação acerca destas intoxicações disciplinares às práticas de vanguarda onde estas interpretações das características recursivas da pintura e do cinema se manifestaram de formas ideologicamente determinantes mas continua esse comentário através da pintura de Edward Hopper e Wim Wenders, cujas obras são indelevelmente marcadas por uma reciprocidade cândida entre a pintura e o cinema e podem ser descritas como singulares na conceção de um cinema que imagina a pintura e uma prática da pintura que é enamorada, mas não aprisionada, do cinema.

No capítulo seguinte Isabel Nogueira propõe-nos um périplo pelo cinema do século XX. “O cinema e a construção da vontade imperiosa de ver” é um conseguido exemplo expositivo daquilo que Alfred Hitchcock em entrevista conduzida por Jean Domarchi e Jean Douchet diz ser o objetivo do cinema, ao afirmar que “Os espectadores que vão ao cinema levam uma vida normal. Vão ver coisas extraordinárias, pesadelos. Para mim, não é uma fatia de vida, mas uma fatia de bolo.” Neste capítulo Nogueira parece fixar as suas atenções numa conceção de imagem cinematográfica poderosa e estetizada, que determina que o espetador de cinema entra num estado de arrebatamento e que dessa forma é levado, por um conhecido dispositivo de suspensão de descrença ou desconfiança no aparato técnico-ideológico, a lugares que só são concebíveis como lugares da imaginação, que Isabel Nogueira define prontamente no início do capítulo, e que são também os lugares de fantasia onde o poder da imagem cinematográfica se manifesta.

Por fim, é dada continuidade à intenção de enquadrar a fotografia como a oportunidade de manifestação da imagem cinemática e/ou pictórica, num complexo fotográfico que Isabel Nogueira apelida de transitivo, por servir de charneira entre modelos desejantes e produtivos de imaginação, simultaneamente internos e externos ao medium fotográfico. Pois o que acontece neste capítulo sobre “A fotografia desejante de cinema e de pintura”, onde de modo sintético Isabel Nogueira consuma a ideia que parece arquitetar em toda a sua narração da imagem moderna, como um estado de realização da imagem que já não obedece a um regime de especificidades limitantes, ampliando as formas e os temas a regras de conveniência genericamente disponíveis pela condição fotográfica.

Éditions L’Harmattan

Uma última nota sobre a recente edição da revista Recherches en Esthétique do Centre D’Etudes de Recherches en Esthétique et Arts Plastiques, desta vez com o tema Art et action, na qual Isabel Nogueira também publica um ensaio, ampliando a já sentida presença da autora no mundo francófono. No seu ensaio, Art, action et non-action: “I would prefer not to”, Isabel debruça-se sobre a noção de não-ação, protagonizada pelo personagem de Herman Melville – Bartleby - o famoso copista que se recusa progressiva e argumentativamente a cumprir o seu trabalho, como forma de autenticação da sua existência. Isabel Nogueira decide então, num encadeamento retórico fundamental, manifestar que a arte moderna e contemporânea são radicadas num desejo de ação que não se compadece com os formatos que manifestam a atividade como geradora de conteúdo, explicitando a não-ação e a recusa de atividade como o seu verdadeiro dínamo. É curioso, e relevante, que esta tomada de posição de Isabel Nogueira seja tornada pública numa publicação povoada por textos, ensaios e entrevistas, que têm como postura uma tentativa de reorganização do pensamento estético-filosófico contemporâneo, que hoje, mais que nunca, se fundamenta pela necessidade de descolonizar, de-modernizar e descentralizar.

Centre D’Etudes de Recherches en Esthétique et Arts Plastiques

 

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Joana Villaverde: Animal’s Nightmare

A certa altura da sua vida, e por sentir precisar de compreender coisas acerca do mundo que habita e das vicissitudes de que é feito, Joana Villaverde empreendeu numa viagem a Ramallah, na Palestina. Essa viagem foi feita nos meses de Junho e Julho do ano de 2014 e a artista teve como suporte uma instituição que a acolheu, a Qattan Foundation, na qual durante esses dois meses trabalhou como artista residente.

Seria uma viagem daquelas que lhe permitiria saber se estava a trabalhar na direção certa, pois o seu trabalho até então tinha como mote a representação de pessoas e de animais que falavam acerca da condição humana. Haveria local mais apropriado para tentar compreender as incoerência da humanidade que o sítio onde esta tem sido, da forma mais violenta e inumana, posta em causa? Joana parte da sua morada habitual e pacata em Avis, no Alto-Alentejo, para um local que é de difícil compreensão para a maioria de nós. De uma terra de abundância e candura para uma terra que foi ao longo de eras apelidada como sendo de “mel e leite”. E é provavelmente esse paralelismo que levou Joana Villaverde à Palestina – por que razão é que num lugar com todas as condições para ser um espaço de abundância material, riqueza histórica e pluralidade cultural, apenas existe conflito e sofrimento?

Joana Villaverde, no texto que escreve para esta publicação explica que o seu objetivo foi esse, de transformar a sua forma de entender o mundo, “porque a vida não se passa igual em todos os lugares.”. E este lugar, que a artista elege para compreender essas diferenças, não lhe serve apenas para perceber que essas diferenças existem para que estas se manifestem no seu trabalho artístico, serve para que a artista perceba que o seu trabalho, tal como o havia feito até esta viagem, jamais iria voltar a ser o mesmo.

Este livro serve por isso para a artista nos contar a sua história de amor por este lugar transformador a partir do ponto de vista da artista que olha para esta porção de terra como um ser humano pronto a deixar-se emocionar pelas histórias de guerra, de violência, de horror e desumanidade.

E é precisamente através desse olhar enlevado pelo amor, pela força e coragem e pela resistência do povo palestiniano perante as aspereza da sua história, que Villaverde se entrega a tentar perceber esse ato de coragem que é existir, e querer existir e lutar por uma vida digna de ser vivida. Como se em certas alturas, em lugares como este, essa fosse uma impossibilidade!

Joana Villaverde embarca assim numa viagem que não é apenas espácio-temporal, até aos meandros mais inexplicáveis da vontade humana, para se embrenhar numa nova forma de trabalhar e de utilizar o seu motor de trabalho: o desassossego que manifestava nos seus desenhos e pinturas através de uma energia traduzida fisicamente, passa a ser visível numa outra forma de energia que consubstancia a energia e as tensões positivas e negativas da vida dos palestinianos nas suas vidas diárias. Joana, durante a sua estadia em Ramallah, incorpora muitos dos hábitos e necessidades diárias dos palestinianos na sua vida, de forma a conseguir aproximar o seu entendimento do esforço que é necessário ter para existir em tal contexto. E fá-lo sem reservas, como nos conta no seu texto quase biográfico, tentando viver como vivem os locais para saber “o que é que move, com que força, onde a vai buscar um artista, um criador, duma parte do mundo sempre em guerra desde que nasceu.”. E a resposta a essa questão encontrou-a nessa estadia que se converte em imagens neste livro, mas imagens que são apenas uma muito distante ideia do que é ser e viver dessa forma. A artista percebe que será sempre alguém que apenas se aproxima dessa realidade e que na verdade será sempre uma outra em relação à condição humana de um palestiniano, mas ainda assim decide que o que a aproxima da Palestina, o seu Alentejo mediterrâneo de oliveiras e calor, não são apenas semelhanças fortuitas, mas um desejo de compreender que transformou em imagens pintadas, esculturas e uma grande instalação, que animou essa ligação em duas situações expositivas – uma em Aviz e outra em Lisboa, na Appleton Square.

Para quem como eu nunca foi a Ramallah, Gaza ou Jerusalém, que não experienciou de perto a tensão da vida sob uma guerra sem fim, das impraticabilidades da segregação, da ocupação e da crueldade sem limite do ser humano, olhar para as imagens fotográficas com que Villaverde ilustra a sua passagem por estas paragens parece ser anódino como olhar para um telejornal dos dias de hoje. Mas a verdadeira substância dessas imagens, que nos dão conta deste atrevimento da autora, é aproximar-nos dos lugares que transportou para os seus desenhos através dos animais; metáforas para os seres humanos que sujeitos a indignidades, exteriorizam sempre uma condição redentora. São imagens redentoras. E é no fundo com uma grande vontade de libertação que Joana Villaverde nos escreve e pinta, acerca destes pesadelos de guerra, inscritos nas pás que transportou dentro de um carro que, na obscuridade, insiste em iluminar um caminho que leva não sabemos bem onde, mas que sonhamos ser um caminho no qual se adivinhe o ponto de chegada.

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João Maria Gusmão e Pedro Paiva: Théorie de l'indiscernable / Teoria do indiscernível

João Maria Gusmão e Pedro Paiva têm uma carreira artística pontuada por momentos em que a sua prática multifacetada é espelhada por textos que circunscrevem os seus interesses especulativos. Desde o início da sua organização como dupla que os autores nos habituaram à existência de textos filosófico-poéticos que funcionam como ruminações acerca dos temas que informam a sua obra plástica e que, no limite, assinalam as topografias pelas quais se aventura a sua empresa teórica e criativa. O texto que agora nos apresentam, nesta publicação das Éditions Ismael, uma pequena e jovem editora de Lyon com entreposto em Lisboa, é um desses textos fundadores da mitografia e ontologia abissológica na qual os autores têm enquadrado as suas investigações.

Publicado originalmente em Abissologia - Teoria do Indiscernível, o que nos é apresentado agora é uma nova publicação com o texto original de 2012 e uma tradução para francês.

O texto, divide-se em duas partes e podemos encontrar logo nas primeiras páginas do ensaio (ficamos sempre com a sensação de ser um ensaio falaz por parecer que as conclusões a que se permite chegar pela articulação dos dados e argumentos oferecidos é beneficiada por uma intencional fantasia e neste sentido afasta-se da noção de ensaio clássica que aproxima da clarificação do tema abordado) uma tirada que nos coloca no enquadramento da ética abissológica, aqui pelas palavras de um estrangeiro que pergunta muito convenientemente:

Onde estão as coisas que não as vejo?

Há uma lembrança do mundo diz-me "As coisas existiam, o mundo estava cheio delas, transbordava, extravasava formas, coisas dentro de coisas, por cima delas outras; no meio, mais coisas escondidas, meio ocultas, submersas; se espreitássemos víamos mais que a fechadura, víamos a chave, a porta, o jardim; víamos não só milhares de milhões de partículas de água, mas também o mar, o mundo, a tartaruga e a lebre à mesma velocidade que as suas sombras; e tudo isso verdejante e incongruente era à velocidade da luz e não como agora, à velocidade do pensamento. Mas sempre quisemos separar uma coisa da outra, separar o mundo de si próprio, desligá-lo da sua infinita abundância e deslumbramento: grandeza de todo esse mundo que ainda assim é insuficiente." Insuficiente para quê?

Para “o ser” vibrar sem se dissolver à chuva.

Esta pequena investida do estrangeiro é bem capaz de explicar a lógica da Abissologia pois aquilo que o homem aponta não é mais que a explicação da separação do homem da infinita abundância e deslumbramento das possibilidades que lhe permitiam noutras eras a aproximação ao pensamento. Um pensamento que é maior que aquele que hoje conhecemos ou concebemos e que o era na medida em que existia à velocidade da própria vida e dos fenómenos, rastreáveis ou não, que dela participassem. E esta tirada coloca-nos no caminho de uma lógica da compreensão, ou de uma ontologia, pois a Abissologia apresenta-se como uma lógica e um processo de validação dos modelos de experiência que podem permitir e produzir conhecimento. Não é portanto estranho que noutra passagem se evoque a gruta como lugar de invenção, ou pelo menos de geração de um modelo gráfico de entendimento que é a vários níveis próximo das propostas criativas dos artistas:

“E numa gruta, para que se faça compreensão desse novelo que liga e corta a vida, o espírito foi engendrado: desenhado entre a quantidade inefável do mundo (o efeito de este ser vasto é de não existir nenhuma expressão que o contenha) e o não-ser (o efeito de se poder pensar que essa vastidão podia simplesmente apagar-se sem qualquer rasto), ouvindo-se então e pela primeira vez, uma voz sem qualquer pertença, uma voz sem corpo, uma voz prestidigitada.”

 

Esta primeira parte do livro, desenvolvida em cinco pontos e mais uns tantos sub-tópicos do ultimo ponto, versa portanto acerca das leis invisíveis e inaudíveis que fundamentam a procura de uma teoria e de uma prática que os autores nomearam de Abissologia e que tem como objetivo o esboço daquilo que “...não pode ter expressão: a verdade das coisas e do tempo só é autorizada mediante o reconhecimento da lógica desse inominável, o não-ser, uma vez que a propriedade do que existe é incontestável, mas arriscada.” Este será então o mote desta teoria do indiscernível e da demanda Abissológica.

Esta primeira parte, cujos capítulos se intitulam

1. Existe uma lembrança de um outro mundo. Que revés, afinal a Terra é oca!

2. A Origem do Mistério.

3. Depois, o calhau e o espírito.

4. A armadilha.

5. (Corolário)

Insidioso é o que para a Abissologia melhor pode descrever esta ratoeira, sendo este último dividido por cinco subseções que glosam acerca dos seguintes tópicos:

i. Que o tempo jamais "dura" durando efectivamente.

ii. Que as coisas são como cadáveres abandonados no mundo.

iii. Que a vastidão do mundo é tanta que nos cega.

iv. Que a morte trabalha o tempo e as coisas numa dimensão paralela e que esse trabalho não se vê porque é indiscernível e não se ouve porque é inaudível.

v. Que na verdade todos os lugares centrifugam e há momentos ou perspectivas onde tudo parece estar parado no movimento.

É neste segmento que com particular desenvoltura se explica que: 

“... a teoria do movimento na Abissologia também tem algo de relacional. Isto é, joga-se entre o móbil e o observador. Na verdade, sujeitando os dois à mesma velocidade produz-se no observador a noção estática do aceleramento a que ambos estão submetidos. É, porém, de todo impossível ludibriar o movimento, o que existe neste caso é uma certa perspectiva sobre a situação. A Abissologia chama a essa miragem do imóvel Horizonte de Acontecimentos. Este verifica-se quando vários acontecimentos se precipitam lentamente para a clareira de um "buraco negro" e na aproximação desse grande não-ser hesitam reverberantemente a entrar na não-existência. Então, apenas se pode desejar que, como quem põe a mão num buraco onde se julgam estar pêras, se consiga tirar a fruta sem entalar os dedos ou, como quem diz, havemos de tirar nabos da púcara.”

 

Finalizando de forma tanto apoteótica como prosaica, este capítulo serve acima de tudo para fazer o leitor encontrar enquadramento para a segunda parte, na qual os autores, já capazes de identificar o objeto da Abissologia propõem um modelo de trabalho fundamentado pela insurreição poética, que é a verdadeira matéria da Abissologia e o que desencadeia a hipótese do horizonte de acontecimentos. Ou como referem os autores no capítulo segundo dedicado às fatídicas figuras de Heróstrato, Empédocles e Hölderlin:

Confirma-se aqui uma insurreição que, todavia, abre um caminho ao poeta:

"Hoje os deuses foram embora; estão ausentes, infiéis. E o homem tem de compreender o sentido sagrado da infidelidade divina, não opondo-se a esta, mas fazendo-a ele mesmo. “Num momento desses”, diz Hölderlin, “o homem esquece-se de si e esquece-se de Deus; vira as costas como um traidor, mas faz isso de uma forma sacra” 1. O que significa trair os deuses de uma forma sacra? A chave aparece numa versão do poema Mnemosyne, de Hölderlin:

Eles não conseguem fazer tudo,

Os Celestiais. Os mortais tocam

O abismo. E assim com eles

A inversão é desempenhada.”

 

Trair Deuses de forma sacra. Será esta a ciência invertida do indiscernível?

Éditions Ismael

João Seguro

(1979), vive e trabalha em Lisboa. É artista e professor. Tem mostrado o seu trabalho em exposições, individuais e coletivas, nacionais e internacionais, estando representado em diversas coleções particulares. Lecionou desde 2006 as cadeiras de Estética, Estudos de Arte, Teoria e Crítica da Imagem, Pintura e Seminários de Arte Contemporânea no Instituto Politécnico de Tomar e na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

 

Teoria do indiscernível capa
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Livro Teoria do indiscernível-30
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