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Entrevista a Miguel von Hafe Pérez

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Catarina Rosendo

A exposição Álvaro Lapa: No tempo todo é uma das mais importantes exposições retrospectivas realizadas nos últimos anos em Portugal. Apresenta um ponto de situação essencial relativamente ao conhecimento da obra deste pintor, sem o qual uma compreensão cabal da arte e da cultura portuguesas do século XX não é possível.

O crítico, curador e historiador da arte Miguel von Hafe Pérez assina a curadoria e traz um olhar novo ao trabalho de Álvaro Lapa, desembaraçado do estatuto insondável que sempre foi atribuído à obra deste artista e interessado em situá-la no momento histórico em que foi produzida.

A exposição resulta de um trabalho de investigação inédito e inclui mais de 290 obras, entre as quais inúmeras pinturas nunca ou raramente vistas, uma quantidade muito significativa de desenhos e alguns dos poucos objectos produzidos por Lapa. O curador arriscou uma montagem expositiva organizada por séries pictóricas e feita pelo lado da abundância, o que se revelou uma opção certeira, ao demonstrar o quão pouco temos visto do total da obra de Lapa nas últimas décadas, e o tão bem que elas comunicam umas com as outras, sem perigo de redundância ou abaixamento da sua qualidade artística geral. 

O processo de investigação e as opções curatoriais, as especificidades da pintura de Álvaro Lapa, a vertente da escrita e a omnipresença da literatura na obra visual, aspectos técnicos ligados ao próprio fazer da pintura e a questão da internacionalização dos artistas portugueses foram alguns dos assuntos abordados nesta entrevista conduzida por Catarina Rosendo que teve lugar no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, onde a exposição estará patente até ao dia 20 de Maio. 

Catarina Rosendo (CR): Em que é que esta exposição difere das outras grandes retrospectivas dedicadas ao Álvaro Lapa, sobretudo as realizadas em 1994 na Gulbenkian e em Serralves, e em 2006, por ocasião do Grande Prémio EDP?

Miguel von Hafe Pérez (MVHP): A exposição difere, essencialmente, por ser a primeira exposição que se faz sem o artista estar presente, o que confere uma alteridade relativamente àquilo que é a história expositiva do Álvaro Lapa. Há muitos artistas que, quando são comissariados em retrospectivas, são menos impositivos e há outros que são bastante impositivos. 

No caso do Álvaro Lapa, aquilo que se percebe nessas duas exposições é que houve um olhar muito interno que condicionou a escolha de obras de tal forma que, se se fizer a sobreposição da lista de obras nessas duas exposições percebe-se que cerca de 70% são as mesmas. Havia um núcleo duro que era a visão do Lapa sobre o seu próprio trabalho, e isso tinha também que ver com o âmbito cronológico que ele privilegiou. No caso das exposições de 1994 e 2006, esse âmbito cronológico iniciava-se em 1968, que o Lapa assumiu como sendo a altura em que teria encontrado uma voz própria em termos criativos. 

Interessava-me, dentro de uma perspectiva da história da arte, mais do que da crítica ou da curadoria, perceber o que estava nesse período que mediava entre as primeiras obras conhecidas que são mais ou menos de 1962-63 e o período da exposição da Galeria Buchholz, em 1969. A circunstância de a Colecção de Serralves ter um trabalho que esteve na primeira exposição individual em 1964 ajudou a dar sentido a esta questão. O período 1964-68 é importante para se perceber alguma da dinâmica formal da obra, ou seja, escolhas como o uso do acrílico e do esmalte, que implicam uma pintura directa, que vem por influência do António Areal e que é determinante para o resto da sua obra, ou um informalismo latente que é filtrado por via de Robert Motherwell. 

Outro aspecto foi o de tentar concretizar um pouco o espírito com que muitas exposições do Lapa foram feitas. Ele assumia que preferia, à ideia de obra única, uma ideia de ambiente expositivo. O Lapa foi sempre um editor de ambientes expositivos.

CR: Ele usava essa expressão?

MVHP: Usava. É uma expressão que até aparece publicada, num catálogo do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra de 1977, onde escreve na sua biografia que “várias das suas mais recentes exposições individuais são programas de edição, ambientes em que o autor se edita”. As exposições do Lapa tinham um carácter muito mais ambiental do que aquilo que hoje julgamos. Pensamos que eram exposições exclusivamente de pintura mas, por exemplo, a exposição das Profecias de Abdul Varetti, Cortinas de ferro e outros objectos, espólio de um escritor falhado tinha elementos que se perderam e na exposição do Escuro como a cova onde o meu amigo se não move havia uma série de livros manuseados pelo autor, de que não há referência quais eram. E fez-me impressão que, nessas duas retrospectivas, algumas das suas séries estivessem apresentadas apenas por dois ou três trabalhos, como no caso das Profecias de Abdul Varetti, do Escuro... ou de Os criminosos e as suas propriedades (exposição de literatura). A questão é como é que se compreende a obra do Lapa quando se vêem, por exemplo, apenas duas das vinte e uma “Profecias”. Tentei trazer a público uma recriação, pelo menos quantitativa, desses ambientes. 

Querer fazer uma exposição do Lapa era também assumir que queria fazer uma coisa diferente, sem o pudor habitual relacionado com a opacidade atribuída à sua obra, que é mais mitificada do que real – o Lapa também ajudou nesta questão. Apesar de tudo, há fios condutores que são perceptíveis e há elementos que jogam com uma ideia de pintura, que essa sim é recorrente, decifrável, entendível, contextualizável. 

CR: O trabalho de investigação que conduziste não terá sido exaustivo mas foi certamente o mais completo feito até agora. Reuniste obras do Álvaro Lapa muito para além daquelas que eram as mais conhecidas. Tinhas noção de que algumas das séries que reuniste eram tão grandes?

MVHP: As séries Que horas são que horas ou Escuro... não foram das mais problemáticas, pois estiveram em exposições com algum tipo de documentação e sabia-se quantas obras tinham cada uma. Mais complicada foi a enorme série de trabalhos que não tem uma associação tão clara a uma exposição. O que me surpreendeu foi pensar que ia estar mais circunscrito às sequências expositivas e ter começado a perceber que há uma produção contínua, em muito maior número do que aquilo que se julgava. 

Há esta ideia de que o Álvaro Lapa é autor de uma obra de certo modo rarefeita e não é o caso, pois há muita obra que não estava catalogada nem reproduzida. Há uma série de obras que estão catalogadas com título na retrospectiva de 1978 no Museu Nacional de Soares dos Reis, mas que não consegui localizar. 

CR: No ensaio que escreveste para o catálogo da exposição falas também de obras que localizaste mas que hoje têm outro título, ou já nem têm. 

MVHP: Sim, mas isso leva-nos a outro ponto que é o facto de o Álvaro Lapa ser bastante despreocupado relativamente à datação das obras e muitas vezes ter repintado sobre trabalhos anteriores. Acontece, por um lado, que a datação que está no verso diz respeito a outra obra e aquilo que está na frente é uma obra dez anos posterior. Por outro lado, muitas vezes as obras mudam de título. Percebi que, com o tempo, há uma rarefacção nos títulos, o Lapa ia tornando-os mais sucintos. No caso do Buraco quase lírico, no catálogo dessa exposição de 1978, a obra tinha um título muito maior: Buraco quase lírico, se se interpretar a mancha verde. 

Mas o que me pareceu muito curioso foi perceber que havia obras destas séries que estavam em casas de coleccionadores particulares, amigos do Lapa, há mais de quarenta anos e que nunca tinham saído para exposições. A ajuda dos herdeiros contribuiu para localizar alguns desses amigos dos anos 1960 e 1970, que por sua vez me indicaram outros que também tinham obras. Houve vários coleccionadores que me perguntaram: “Porque é que até hoje me pediram sempre a mesma obra? Eu tenho mais...” Isto demonstra que o Lapa, quando preparava as exposições, usava sempre as mesmas obras.  Foi por isso que a estruturação da exposição através de séries foi muito importante, porque permitiu mostrar obras que o público em geral não conhecia, o que expande a cultura visual da obra do Lapa, até porque se algumas das obras são expectáveis, outras são surpreendentes, como é o caso das da série Moradas na Mãe-Terra, que pertencem a um colecionador que conheceu o Lapa quando ele frequentou o curso de Direito em Lisboa nos inícios dos anos sessenta. São painéis muito coloridos, aproximáveis à banda desenhada, e mostram um lado que não estava muito presente naquilo que nós convencionalmente associamos à obra do Lapa. 

CR: O que é que consideras que esta exposição traz de novo para a compreensão da obra do Álvaro Lapa?

MVHP: A presença muito forte do desenho. Havia uma espécie de hiato na visão global da sua obra entre aquilo que era desenho e aquilo que era pintura. E há uma presença estrutural e estruturante, que será contínua, que é a mesa, que está em apontamentos e desenhos, datados de 1963-65 (alguns até com presença institucional, como a Caixa Geral de Depósitos) que me levaram a perceber que ao longo de muitas das suas séries a presença da mesa é constante.

CR: Aliás, usaste esse dispositivo em partes da montagem da exposição.

MVHP: Sim. A mesa é essencialmente um elemento de convivialidade mas também literário, o que me levou à opção pela horizontalidade no modo de apresentar praticamente tudo o que era desenho, recriando aquilo que seria esta prática comum do Lapa trabalhar sobre uma superfície horizontal, não só no desenho, mas também na pintura, como se vê numa fotografia do Álvaro Lapa a pintar feita pelo Saguenail. 

 

 

Serralves 2018 Álvaro Lapa vistas Joaquim Norte (3)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (17)
Serralves 2018 Álvaro Lapa vistas Joaquim Norte (2)

CR: Pode dizer-se que o Lapa pintava com o suporte colocado na horizontal?

MVHP: Não posso afirmar que essa circunstância é estrutural, pelo menos naquele caso a reprodução assim o indica, mas a prevalência do desenho na obra do Lapa e a sua consistência leva-me a pensar que seja uma prática comum.

Entroncando nesta questão, uma das séries decisivas no trabalho do Lapa, os Campésticos, advém de uma situação assim. Ele refere explicitamente que o reflexo que vinha de uma marquise, projectado na superfície horizontal onde ele estava a trabalhar, lhe sugeriu uma imagem mais interessante do que a imagem original – e daí o neologismo “campéstico”, em que o “campo” e o “doméstico” são interligados numa mesma superfície de representação. Tudo isso reforçou a opção de apresentar tudo o que era desenho na horizontal. Só depois de montada a exposição é que percebi que esse efeito se reproduz in loco na exposição, no modo como os próprios “Campésticos” se reflectem nos acrílicos que estão sobre os módulos expositivos que acolhem os desenhos. 

Mas ainda voltando ao desenho, percebe-se que a proeminência do auto-retrato, ou do “autoautorretrato”, no desenho tem também eco na própria pintura. A questão do auto-retrato remete para muitas coisas que o Lapa fez posteriormente, como a série dos “Museus”, onde as duas últimas obras são uma espécie de bricolage de uma estrutura museológica onde ele se auto-representa, de forma diferida, através das suas obras. 

CR: Um dos seus auto-retratos aparece também no Caderno de Burroughs

MVHP: Isso tem que ver com um sentido de mise en abyme que ele sempre privilegiou. Aliás, o reutilizar contínuo de pinturas antigas pode ser esse efeito de bricolage, ou seja, de literalmente pôr um trabalho dentro do espaço pictórico de outra obra. Os primeiros "Museus" têm lá dentro obras anteriores. Isso sublinha e reforça a ideia do título da exposição, No tempo todo, ou seja, a ideia de que esta é uma obra sem tempo, porque não se consegue ancorá-la cronologicamente nos anos 1970 ou nos anos 1980 ou onde quer que seja. 

CR: Até porque estilisticamente não há distinções entre os vários períodos ou séries. 

MVHP: Não há essa distinção que é tão vital noutros percursos artísticos. Há certamente coisas que têm uma posição muito concreta num determinado tempo, como por exemplo a série Milarepa, que conseguimos integrar num contexto internacional por esse laivo mais pop de utilização da tinta sem profundidade, e que vem também da influência do zen, que para mim vem da cultura beat, que menciona amiúde essa tradição oriental por oposição ao racionalismo filosófico europeu. São pinturas que se inscrevem muito bem num contexto internacional, mas que não têm tempo no contexto português porque mostram o Lapa a criar o seu próprio tempo. E o tempo do Lapa é claramente o de uma interpretação da modernidade, de um espaço cultural que ele interpreta através do platex, dessa pobreza, material mas não espiritual, de estar circunstancialmente num país periférico. 

Ele não tem uma relação com a modernidade por afinidade vivencial, mas mitificada – que é uma palavra que o Lapa usava muito –, que se verifica também em certos preceitos da cultura underground que ele seguia, e essa relação é o caminho mais curto que ele encontra para se tornar verdadeiramente universal.

Esse discurso faz com que todo o seu exercício de pintura seja feito, em primeiro lugar, contra um contexto mais pequeno, o do academismo prevalecente na escola pictórica portuguesa, no Porto em concreto contra a influência de Júlio Resende que dominava a Escola de Belas-Artes, e, em segundo lugar, em exclusão por uma questão conceptual, compaginável com aquilo que é interessante na dita tradição moderna, contra a facilidade. Isto é que torna a pintura do Lapa tão singular. 

Outra coisa importante é aquilo a que chamei a coisificação da pintura, a noção de que a pintura instaura uma realidade, que não a representa, nem mimetiza. Como quando alguém pergunta a Robert Motherwell, outra grande influência de Lapa, o que significa a pintura e ele diz que não significa nada, é uma realidade nova, que está aí. Creio que isto é muito importante para se perceber o Lapa. Muitas vezes as pessoas ficam bloqueadas nessa tentativa de decifração absoluta de uma imagem, de um caderno, quando devem fazer o pensamento ao contrário, devem partir da imagem e perceber que aquilo é uma outra realidade instaurada. Isso é um exercício diferente daquele que estamos habituados a fazer, quando interpretamos a pintura a partir de elementos de representação, iconográficos, de contexto histórico, etc. 

CR: A própria pintura do Lapa oscila sempre os dois polos da abstracção e da representação (mais do que da figuração). Ele parece jogar intencionalmente nesse limbo. 

MVHP: Sem problema nenhum. E por isso é que nele a figuração ou a abstracção não têm peso nem espessura ontológica, porque são exclusivamente meios. Trata-se da criação de uma imagem, e essa imagem é que é uma outra realidade. 

CR: Como é que a pintura de Álvaro Lapa se desdobra em séries narrativas? E qual a relação que isso tem com a literatura - que se sabe ter tido um grande peso na sua obra? E dentro da literatura o que lhe interessava para construir o seu próprio universo: a sua persona artística, pontos de ancoragem para a realização da pintura?

MVHP: Em primeiro lugar, e isto é muitas vezes esquecido, um das grandes desgostos que o Álvaro Lapa sofreu durante a sua via criativa foi nunca ter sido reconhecido como escritor. O Álvaro Lapa tem cinco livros publicados, há um período importante a partir do início dos anos 1970 quando começa a escrever o Raso como o chão em que ele assume que a escrita é um exercício de uma nobreza superior à da pintura. Ele acha que a escrita é a grande arte e que a pintura é uma arte mais fácil, e sendo mais fácil também se torna mais difícil, mas tem esta noção de que quando conseguiu traduzir aquilo que procurava em termos literários talvez esses tivessem sido os momentos de maior felicidade e realização enquanto autor. 

Dito isto, na pintura do Lapa há uma ideia de narratividade, de “série narrativa”, que traz o campo visual para o campo da escrita e da literatura. É claro que grande parte dessas séries narrativas se articulam com referências literárias, mais ou menos óbvias, de uma determinada literatura. No documentário do Jorge Silva Melo [Álvaro Lapa: A literatura, 2008], a uma certa altura este diz-lhe que o que ele gosta é da “má literatura”, em contraponto àquilo que tinha sido o ensinamento do Vergílio Ferreira da sua juventude em Évora e o Álvaro Lapa responde: “Não, não. Do que eu gosto é da boa literatura”. Ou seja, ele recusa o cânone da literatura clássica para procurar uma literatura underground, de uma certa complexidade modernista estruturada a partir de autores de referência como Kafka, Beckett, Céline e Joyce principalmente.

Essas referências culturais vão ser instrumentais sobretudo no princípio de carreira. O Milarepa é uma referência cultural que vem, percebe-se pela ramificação dos seus gostos literários, da beat generation e da centralidade da filosofia zen na articulação da narrativa em Jack Kerouak, por exemplo. Esses gostos vão-se sedimentando muito precocemente e aparecem algumas referências disso nas primeiras séries logo de finais de 1960-70. O quadro Prece pelos bêbedos é uma referência ao Malcolm Lowry e o título da exposição Escuro como a cova onde o meu amigo se não move, também é tirado deste escritor. No próprio Raso como o chão há uma série de referências a Wilhelm Reich e Max Stirner, que configuram um universo literário que ele vai plasmar de forma mais evidente e pública na famosa série dos “Cadernos”. 

Mas gostaria que este universo de escritores fosse entendido como algo mais circunstancial, ou seja, não são só aqueles dezanove autores que interessam ao Lapa, e não são só retratos. Aquelas imagens convocam a ideia do duplo, uma espécie de ventriloquismo, de alguém que “fala por”. Aquelas imagens “falam por”, e isso é fundamental para compreender a obra do Lapa.

Aquelas imagens não representam, não são abstracções, são uma espécie de voz, e essa voz tanto se pode ater num detalhe qualquer estrutural, formal ou imagético de um romance, como na sensação vivida durante a própria leitura, na reacção ao que se lê, que é uma abstracção da realidade cujo resultado final, em termos de imagem, pode ser infinito.

Essa infinitude no Lapa sempre foi determinante naquilo que ele rasurava e, por isso é que – insisto nesta ideia e o Lapa insistia nesta ideia –, o mais importante que fica da obra é aquilo que fica de fora; no Lapa há sempre esse exercício.

Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (62)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (64)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (63)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (66)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (65)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (61)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (61)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (59)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (58)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (57)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (56)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (55)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (54)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (53)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (51)
Serralves 2018 Álvaro Lapa fotografia de Filipe Braga © Serralves (52)

Vistas da exposição "Álvaro Lapa: No Tempo Todo". Museu de Arte Contemporânea de Serralves. 2018. © Fotos: Filipe Braga. Cortesia de Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

 

CR: É por isso que no Lapa a pintura é sempre esparsa?

MVHP: Claro. Porque é esta espécie de magma vital, que advém do conhecimento desse universo literário, que a certa altura se torna decisivo no modo como queremos chegar a uma determinada essência; ficar na descrição realista, ou pseudo-realista, será sempre uma espécie de empobrecimento da imagem primordial. 

CR: Como é que o Lapa pintava? A exposição tem muitos desenhos que se percebe que são estudos mas, olhando para as pinturas, além dessa qualidade rarefeita evidente, parece que houve uma enorme maturação mental antes de começar o gesto da pintura propriamente dito, e o acto de pintar parece uma coisa muito imediata sobre a tela, sem grande reflexão, por paradoxal que pareça. Era isto que se passava?

MVHP: O Lapa dizia expressamente que, para ele, o desenho é composição e a pintura é construção. Esta ideia de construção, ele leva-a até certos limites, e tem que ver com uma noção quase de bricolage, de construção literal dentro da própria tela, como são os últimos “Museus”. O Lapa nunca foi um pintor nem demasiado informalista, no sentido de uma espécie de uma escrita automática, nem de composição no sentido convencional. O efeito de rasura, que ele tanto reclamava, ou aquilo que deixava de lado, resulta de uma construção mental que é dolorosa, e ele sabia-o, pois dizia, com uma certa arrogância perante os fenómenos de mercado, “Eu sei perfeitamente o que o público quer”. 

Não cair nessa tentação era muito importante. Aí, sim, entendo essa construção como eminentemente conceptual e é por isso que a pintura do Lapa muitas vezes indica uma espécie de pensamento que é uma redução ao osso daquilo que é, apesar de tudo, uma necessidade de representação plástica. Ele não é um artista que “fuja” da pintura enquanto tal, é sim um artista que pretende que a pintura seja um território de outras  possibilidades. 

CR: Detectaste algo na obra de Álvaro Lapa relativo ao modo como as séries de pintura em redor do 25 de Abril de 1974 fizeram uma reflexão sobre esse contexto muito específico que o país atravessou. Isto é uma ideia pouco convencional, pois não se tende a considerar a pintura do Lapa como partindo ou estando ligada a nada que pertença à realidade concreta de todos os dias. 

MVHP: Foi também por isso que os momentos expositivos da obra do Álvaro Lapa surgiram como relevantes. Esses anos são muito radicais e muito centrados nas três exposições que fez. Sente-se que foram exposições determinantes dentro da história expositiva em Portugal, com um grau de excepcionalidade resultante do facto de terem sido feitas numa galeria comercial, a Buchholz, dirigida por um crítico de arte, o Rui Mário Gonçalves. António Rodrigues escreveu, na sua tese, que as exposições do Lapa nesse período, e eventualmente as da Ana Vieira e do Alberto Carneiro, determinam um contexto de radicalidade expositiva na arte portuguesa absolutamente singular e dificilmente repetível depois – e assim foi, de facto. 

A assertividade dessas exposições levou-me a centrar a atenção nesse período, 1971-75, e a perceber que as sensações paradoxais que se poderiam viver no pré-25 de Abril e aquilo que seria expectável num artista no pós-25 de Abril, estão completamente viradas do avesso na obra do Lapa. A primeira exposição, Escuro como a cova onde o meu amigo se não move, em 1971, é um momento sombrio, com uma faixa negra que envolve todas aquelas pequenas figurações, mais ou menos enigmáticas, e um lado negro que se pode entender como reacção a um Portugal isolado, ou tumular, até pela forma geométrica do país. Isto é contrariado logo no ano seguinte na exposição Profecias de Abdul Varetti, cortinas de ferro e outros objectos, espólio de um escritor falhado, em que estando Lapa num dos seus momentos de maior isolamento, a viver num casebre em Porto de Mós, propõe uma visão solar da realidade, com certeza como escape, mas paradoxal relativamente àquilo que tinha apresentado um ano antes. 

Não deixa de ser curiosa a influência de uma viagem que o Álvaro Lapa faz ao norte da Europa nesse período, onde terá contactado com comunas de artistas, nomeadamente na Dinamarca, onde havia essa tradição. Não sei se as “Profecias” vêm desse lado utópico que ele possa ter percebido nessas comunidades, mas elas foram criadas a partir de uma perspectiva absolutamente singular relativamente àquilo que era expectável antes na arte portuguesa e não têm qualquer tipo de genealogia directa ou indirecta.

Aquilo é algo que nasce do nada e do nada cria esse todo – o facto de ser uma das obras mais singulares do século XX português. 

O paradoxo entre esses dois movimentos contraditórios, imediatamente antes do 25 de Abril, indiciam aquilo que ninguém quer falar na obra do Álvaro Lapa, que é uma espécie de sismografia da esquizofrenia política que se vivia. O Álvaro Lapa, não sendo um artista político, acaba por ser um artista radicalmente político. São essas coisas que muitas vezes não são ditas, mas que têm que ser apreendidas, pelo menos. Ele tinha um interesse particular pela ideia de uma sociedade utópica, por uma espécie de “anarquismo integral”, como aparece numa das “Profecias”, em na sociedade pudesse haver essa convivência salutar entre o animal e o racional, entre as várias gerações, sem classes, onde o artista fosse tão importante como todos os outros intervenientes na sociedade. Tudo isso, que está expresso nas “Profecias”, fazia parte das expectativas evidentes do 25 de Abril e da cartilha do ideário pós-revolucionário. Aquilo que se poderia pensar é que o Álvaro Lapa iria, de alguma forma, exultar com essa liberdade conquistada. Mas quando ele faz a exposição Os criminosos e as suas propriedades (exposição de literatura), em 1975, se nos abstrairmos da história e do contexto, até diríamos que aquela era uma exposição do Portugal salazarento. Sabemos que a cela e o espaço de aprisionamento é um dos temas da filosofia ocidental, basta ir a Foucault, ou da literatura, com Céline ou Burroughs. E que, biograficamente, a exposição tem também que ver com a experiência de o Lapa ter tido o pai preso, em Évora. Mas ele pegou nestas ideias no período em que, supostamente, o país estava a viver uma utopia e os artistas andavam a fazer murais colectivos e os intelectuais europeus vinham a Portugal ver o que se passava. 

Essa visão enclausurada era a antecipação da permanência do lastro salazarento, que pouca gente adivinhava e que o Lapa depois afirmou com o livro Porque morreu Eanes, escrito em 1977, um livro fundamental da literatura portuguesa que retratou de forma cruel o desabamento de todo um sistema que se julgava possível construir. Estamos a falar de uma sismografia, latente, intelectualizada e muito pouco percebida, e isso criou-lhe um grande ressentimento porque o livro não foi recebido enquanto obra literária, o que ele aspirava, nem enquanto momento sociológico de apreensão de uma realidade que nem os quadrantes ligados ao Partido Comunista, se calhar, viam de forma tão catastrófica. 

Nesse sentido, é muito importante perceber-se esta dimensão política no trabalho do Álvaro Lapa. O único exemplo onde isso é evidente é a obra Por Allende, criada em 1973 no próprio ano do desaparecimento de Salvador Allende; é um gesto quase de grafitti tornado pintura, inscrito sobre um trabalho previamente feito. Esse é o único gesto eminentemente político de Álvaro Lapa. Mas esta dimensão é importante que se perceba. 

CR: Qual o lugar que o Álvaro Lapa ocupa na arte portuguesa? O que é que o torna essencial na abordagem à arte feita em Portugal no século XX e no início do século XXI? 

MVHP: O Álvaro Lapa tem a particularidade de não se conseguir dizer que foi importante neste ou naquele período, ao contrário de outros artistas. O Álvaro Lapa, até pelo modo como o inscreveram nas exposições colectivas, na Alternativa Zero e em Depois do Modernismo, etc., é importante em períodos diferentes. Ele está presente nessas grandes exposições de tese porque não é posicionável num só quadrante nem, por exemplo, é um pintor “dos anos 1980”, por mais que tenha sido recuperado na euforia do mercado dessa altura. Este lastro inter-geracional é uma demonstração da intemporalidade do Lapa. A pintura dos Campésticos, tal como ele próprio o demonstrou, é tão vital em 1983, quando começa, como em 2005, quando apresenta os últimos quadros. 

CR: Como é que se pode trabalhar a internacionalização de um artista como o Álvaro Lapa? (Sabendo-se da dificuldade em inscrever, fora de Portugal, a obra dos artistas desta geração). 

MVHP: Deve-se fazer sempre uma dupla leitura. Uma coisa é a verdade intrínseca da obra, outra coisa é a verdade intrínseca do sistema institucional onde se está inscrito. Relativamente ao que é a obra do Lapa, estrangeiros que visitam esta exposição ou que já tiveram contacto com a obra, percebem que ela tem uma singularidade que é desconcertante mas possível de inscrever nas narrativas mais globais. Isso é muito importante. Essa capacidade de inscrição dá-se porque em termos formais há um paralelismo com coisas que aconteceram noutros lados mas em termos conceptuais partiu de territórios muitos diferentes.

A relação idiossincrática com a literatura é algo que o Lapa pode trazer para o discurso da arte internacional e torna-o, quanto a mim, uma referência importante no contexto da pintura internacional. 

A outra verdade é a verdade institucional. Da minha experiência internacional sei o que pesa: cada centro tem o seu peso específico, cada periferia tem o seu não-peso específico, os custos da distância têm o seu peso também. No caso concreto desta exposição do Álvaro Lapa, os tempos não foram os tempos institucionais, ou seja, os tempos de produção da exposição não foram viáveis dentro daquilo que é um tempo institucional de negociação de uma exposição. 

CR: Agora referes-te especificamente à possibilidade de esta exposição poder ou não realizar uma itinerância no estrangeiro.

MVHP. Exactamente, mas isto tem muito que ver com questões relacionadas com internacionalização. Infelizmente em Portugal ainda não se consegue – penso que até já se conseguiu mais – fazer um trabalho mais estruturado em termos institucionais. Esta devia ser uma exposição mais ou menos preparada com dois anos de antecedência para se poder negociar uma itinerância que tem de ser imediata à realização da exposição, por causa dos empréstimos e seguros contratados. É claro que, quando os tempos se comprimem, os museus que trabalham com uma certa escala e com dois ou três anos de antecedência, não vão aceitar. São raras as instituições em Portugal que estão a trabalhar a três anos, e as pessoas têm de começar a perceber de uma vez por todas as dificuldades que isso causa. Talvez, por um acaso qualquer, alguém possa interessar-se tanto pela exposição que queira eventualmente fazer uma versão ou uma reedição repensada, mas não será uma itinerância real porque para isso não há hipótese. 

Há um efeito pedagógico relativamente àquilo que é a arte portuguesa desta época que ainda envolve muito esforço, mas eu sinto que há interlocutores internacionais, com imensa responsabilidade e qualidade, que quando são confrontados com esta realidade acham estranha a distância existente. Agora, entre o desejo e a concretização, só falta possibilitar isso, mas há uma questão que em Portugal é muito pouco entendida - se nos quisermos inscrever no circuito internacional, temos que perceber os tempos institucionais, quer se queira quer não. Não há volta a dar ao texto. 

Catarina Rosendo

(Lisboa, 1972) Historiadora da arte. Trabalha no âmbito da arte contemporânea, através de projectos curatoriais, edições, inventariação e organização de espólios artísticos, seminários, cinema documental, membro de júris, entre outros. Investigadora, desde 2006, do Instituto de História da Arte (FCSH-UNL). Desenvolve, desde 2014, investigação curatorial para a Colecção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves. Integrou, entre 1995-2006, o Serviço de Exposições da Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea (Almada). Co-autora do filme documentário sobre o escultor Alberto Carneiro, Dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar (2008). Autora de livros e catálogos de exposição e de ensaios para catálogos de exposição, actas de congressos e imprensa. Prémio José de Figueiredo [ex aequo], Academia Nacional de Belas-Artes, 2008, com o livro Alberto Carneiro, os primeiros anos, 1963-1975 (2007).

 

Museu de Arte Contemporânea de Serralves

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