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Henrique Pavão: A matéria, a ilusão e o olhar cruzado

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Sérgio Fazenda Rodrigues

Sobre as exposições: Absence Reminders e Antes e Depois de Antes

 

Depois da nomeação para o prémio Novo Banco Revelação - 2016 e de uma exposição na Appleton Square, em Lisboa, Henrique Pavão apresentou novos trabalhos na Bienal Anozero’17 (Coimbra), com curadoria de Delfim Sardo e Luiza Teixeira de Freitas e apresenta, na Culturgest (Porto), até dia 28 de Janeiro, uma exposição individual, com curadoria de Delfim Sardo.

O percurso deste artista, apesar de curto, é invulgarmente conciso e rigoroso. O seu interesse recai sobre uma relação complexa entre as ideias de tempo e espaço, e o seu trabalho aborda questões de duração e especificidade. Adoptando vários formatos, como a fotografia, a escultura, o vídeo e a instalação, o autor indaga a noção de perecimento e a possibilidade de referenciar um local. Apoiando o seu pensamento nos escritos de Marc Augé e de Rem Koolhas, entre outros, Henrique Pavão amplia a maneira de reconhecer, nomear e questionar um lugar.

Curiosamente, ancorado a uma linguagem que afirma a expressão da matéria, o seu trabalho celebra a fugacidade e o transitório. Sublinhando uma ideia de corpo, de presença e, em simultâneo, de desaparecimento, Henrique Pavão apoia-se num imaginário de ilusões onde manipula a apreensão das coisas e o entendimento que delas temos.

Ao problematizar a percepção do real, o autor explora a ideia de um tempo sobreposto, que se repete e se projecta no mesmo instante, instaurando uma estranheza inquietante. Nas suas obras há uma melancolia que advém da convocação da memória e do anseio mas, também, da posição em que o observador é colocado. Apesar de interpelado, quem vê permanece à distância, numa condição de voyeur. E, nessa condição, aquilo que o observador testemunha é a forma como os elementos existem e se transformam, com base numa vontade intrínseca ao objecto e ao material; ou seja, uma manifestação de inevitabilidade, fora do alcance de quem os observa.

Dir-se-ia, então, que há uma coexistência de diferentes planos, onde a vida e a morte ocorrem em conjunto, de modo complementar e não dicotómico. Uma realidade que responde a uma outra ordem, onde a nossa vontade, ou capacidade de domínio, está fora de campo.

Absence Reminders (2017) é uma instalação apresentada numa das salas do Colégio das Artes, em Coimbra, composta por trinta e seis fotografias (o número de capturas que um rolo permite), trinta e seis suportes de ferro e trinta e seis pedra de obsidiana. O conjunto dispõe-se ao nível do olhar e as pedras interpõem-se entre o observador e a imagem, ou entre quem está presente e o que está retratado.

As imagens mostram uma janela que pertenceu à casa onde Henrique Pavão cresceu, onde, de dentro para fora, guia-se o olhar para a luminosidade do espaço exterior. De modo contrário, de fora para dentro, as pedras puxam a atenção para o seu corpo escuro, remetendo-nos a um lugar interno.

Das antigas culturas mesoamericanas a várias tradições ocidentais, a obsidiana é uma pedra utilizada para o fabrico de espelhos negros - instrumentos empregues para o exercício de práticas divinatórias, que permitem olhar para dentro (para o inconsciente) e, daí, para um tempo vindouro.

A imagem da janela remete-nos para o exterior e para um tempo passado, e a presença da pedra remete-nos para o interior e para um tempo futuro. Assim, enquanto a imagem se reporta a algo concreto, que se assume como memória, a pedra liga-se a algo especulativo, que se assume como matéria.

Ambos os elementos, janela e pedra, são entidades de fronteira, ou pontos de ligação entre dois estados distintos. Mas, entre passado e futuro, representação e objecto, ou facto e ilusão, há uma relação densa e complexa, que não surge de forma directa, ou linear.

Na sequência das trinta e seis imagens, que aparentam um encadeamento longilíneo, da esquerda para a direita, o verdadeiro movimento decorre da sobreposição, em profundidade, no seio de cada uma. Na verdade, na unidade de cada peça e no conjunto que elas formam, trata-se de promover um atravessamento que esbate dicotomias e problematiza a realidade.

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Antes e Depois de Antes (2017) é uma instalação apresentada nas salas da Culturgest, no Porto, composta por um conjunto de dezasseis esculturas em alcatrão prensado, dezasseis monitores e um elaborado sistema de videovigilância. A obra, propositadamente desenvolvida para o local, trabalha com as particularidades do espaço existente, utilizando os dois pisos e a antiga caixa-forte como elementos impulsores da intervenção.

A caixa forte é o centro do conjunto e posiciona-se no piso inferior ao espaço expositivo, debaixo do local onde os monitores são apresentados. No seu interior, que está encerrado ao público, dispõem-se as esculturas, em grelha, e um sistema de captação de imagem, ao seu redor. As imagens que os monitores apresentam, no piso de cima, reportam-se a vistas de pormenor e de conjunto mas, apenas um, mostra as esculturas em tempo real.

Henrique Pavão gere as imagens de modo cinematográfico, controlando a proximidade, a posição e a duração de cada vista mas, também, a sequência do todo. Sem grande aparato e com uma encenação cuidada, o autor constrói um tempo que é difícil de mensurar. O que cada monitor assinala é um acontecimento inerente à própria obra, onde a deterioração das esculturas advém do comportamento da matéria e da sua cedência à gravidade, mas a forma como isso acontece, mostrando apenas um excerto, que tanto dura escassos minutos, como longas horas, define já um outro tempo.

Remetido para a condição de voyeur, o observador não está certo da acção a que assiste, de como ela se processa, ou de quando ela acontece. Para ele, existe uma leitura difusa de algo que não é fisicamente acessível ou comprovável. Na verdade, à semelhança do que o próprio espaço insinua, a intervenção de Henrique Pavão trata de construir um “jogo de espelhos” que altera a percepção dos factos. Algo que lida com o objecto e a sua imagem, não por um sistema de reflexos, mas sim por uma manipulação da memória e da sua veracidade.

Entre o que aconteceu e o que agora decorre, a coisa e a sua representação, ou o facto e a ilusão há, uma vez mais, uma relação densa e complexa que não é directa, ou linear. Tal como em Coimbra essa relação estabelece-se entre a parte e o todo, ou entre o elemento e o conjunto. Mas aqui, também, entre o conjunto e o próprio local.

Nas duas instalações, a densidade da obra é inerente à tensão do que se mostra e do que se oculta. Mas se em Absence Reminders a acção suspende-se, horizontalmente, ao nível do olhar, em Antes e Depois de Antes a acção firma-se, verticalmente, com a carga da gravidade. Numa o tempo flui, na outra o tempo pesa. Em ambas há uma outra realidade, que fascina e envolve.

 

Sérgio Fazenda Rodrigues

Arquitecto e Mestre em Arquitectura (Construção), foi doutorando em Belas Artes e é doutorando em Arquitectura, onde investiga as relações espaciais entre Arquitectura e Museologia. Faz curadoria de arquitectura e artes visuais e integrou a direcção da secção portuguesa A.I.C.A. Desenvolveu com João Silvério e Nuno Sousa Vieira, o projecto editorial Palenque. Foi consultor cultural do Governo Regional dos Açores, tendo a seu cargo, nesse período, a construção da coleção de arte contemporânea do Arquipélago – C.A.C. 

 

Henrique Pavão

Culturgest 

Anozero - Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra

Uma Lulik

Imagens: 1º bloco: Absence Reminders, Colégio das Artes, Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra. Cortesia do artista e galeria Uma Lulik. 2ª bloco: Antes e depois de antes, Culturgest Porto.  Cortesia do artista e galeria Uma Lulik.

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