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10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte

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José Marmeleira

Nas duas salas da Galeria Municipal do Porto não há canções, melodias ou histórias, mas escutam-se sons, ecos, vibrações e vêem-se imagens; coisas que, simultâneas e dispersas no espaço, formam um organismo vivo, animado que envolve o espectador na imaterialidade de um azul artificial, “plástico”. Eis o cenário de 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, exposição comissariada por João Laia a partir da colecção António Cachola, em depósito no Museu de Arte Contemporânea de Elvas e no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.

Azul. A exposição abre e avança com esta cor e é ela que ilumina e, por vezes, obscurece os trabalhos dos 34 artistas presentes. Não se trata, portanto, de uma exposição convencional. O branco purificador que, numa visita a uma galeria de arte, dirige e enquadra o olhar desaparece no monocromo diáfano do azul. E é no interior desse ambiente (um espaço aquático sem água, um câmara iluminada) que a multitude de obras se manifesta, estabelecendo entre si nexos formais (note-se, por exemplo, aquele que ocorre entre I forgot to go to school yesterday, de Joana Escoval e Double Recliner, de Fernanda Fragateiro) ou identificando e delimitando interrogações que caracterizam o mundo hodierno, como sejam a (in)distinção entre o natural e o artificial, o humano e o animal, ou a consciência de que todas as experiências do mundo são, cada vez mais, mediada pelos objectos e a técnica (refiram-se as propostas, ainda que absolutamente distintas, de Mariana Silva e Catarina Dias).

10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte desdobra-se como uma narrativa descontínua, móvel, fragmentada, mas que se enraíza neste tempo e neste lugar.

O modo como as obras apontam para universos e sentidos que poderíamos considerar metafísicos e filosóficos, a maneira como assumem o seu mistério, não exclui a sua presença numa narrativa, que é a da arte portuguesa.

E a exposição começa, exactamente, com as obras temporalmente mais distantes, Cama Valium (1998), de Joana Vasconcelos e Encantador de Serpentes (2007), de João Tabarra. Ambas anunciam, por um lado, uma dimensão reflexiva, especulativa que se foi tornando comum e recorrente no trabalho dos artistas, e por outro, um tipo de arte que não faz da ironia um exercício espúrio e gratuito, mas que se transmuta numa inquietação existencial, tornando-se aos olhos do espectador quase fantasmática, irreal, despertando fascínio e perplexidade.

São as obras mencionadas que constituem o limiar da exposição e introduzindo algumas das linhas temáticas das quais ela partirá (embora sem a elas se reduzir): o confronto do humano com o inumano ou o não-humano, a relação com a tecnologia no quadro de um gesto determinado pelo pensar (a arte) em que permanecem modos históricos de fabricação (o desenho, a escultura, a pintura). A proposta de Pedro Neves Marques é elucidativa, introduzindo um dos elementos mais significativos da exposição: o som. Num ecrã digital, uma planta é tocada por um braço robótico, numa delicadeza que é, também, perturbante. Encontra-se de facto nesta relação uma qualquer noção de alteridade ou o que se observa são gestos ou situações tão-somente humanizadas, em que os humanos afinal se reencontram? A arte faz-se com o pensar e é pensar, e aqui, na Galeria Municipal do Porto, produz coisas instáveis, liquefeitas, difíceis de apreender ou perceber, como parece sugerir Isle, o vídeo de Diogo Evangelista. Uma gruta aberta no interior da qual se escuta uma voz feminina, cores, imagens de um animal num estranho ritual. Este é um trabalho que cria uma fissura na exposição (um refúgio do azul), emitindo sons que se estendem ao espaço, contaminando as pinturas de Gil Heitor Cortesão, de Catarina Dias e Marta Soares, conjunto em que a desordem e a dissolução das imagens se confundem, ou as três imagens fotográficas de AJD, de António Júlio Duarte em que o não reconhecimento da realidade é devolvido ao espectador.

 

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A exposição encontra-se, entretanto, habitada por fantasmas que outros sons, outras imagens vão libertando. Há fantasmas do outro nos rostos das fotografias de La Pyramide Humaine, de Filipa César ou naquelas que compõem Jardim Tropical, de Vasco Araújo (uma presença marcante e significativa no espaço), na instalação sonora de Diana Policarpo, Sun in Cancer, evocando a música da compositora Johanna Beyer, na tela de João Queiroz, em que a pintura e a paisagem “reconstituem” uma ideia de natureza.

A exposição vinca-se num tempo humano, interrogando a relação com a temporalidade, com a história da arte e com a narrativa que a abrange: a da humanidade.

É nesse sentido que se desvelam a ficção arqueológica de Fernando Tropa, com os seus enigmas e possibilidades (sobre o significado da imoralidade e verdade do objecto artístico) ou New Skin, Old Stone, instalação de Andreia Santana que, através da escultura e de uma projecção de slides, elabora uma reflexão poética e táctil sobre a linguagem e a comunicação, ou, ainda, as revisitações de André Romão a certas obras da cultura ocidental em Everything lasts forever (Bones) e Persian War/War of Independence, sublinhando a circularidade e o cariz contingente, e não processual, dos acontecimentos da história. Embora submerso num azul intangível, embora repleto de ficções e fantasmagorias, mundo possíveis e paralelos, 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, acontece aqui na terra.

Uma nota final que acentua a dimensão mundana (no sentido de wordly) desta exposição: a noite de performances que, no dia da inauguração, 9 de Dezembro, no Cinema Passos Manuel contou com as participações de Carla Filipe, Nuno da Luz, Vera Mota, Joana Escoval, Diana Policarpo, Pedro Barateiro (que estreou em absoluto uma nova performance), Von Calhau! e DJ Lynce.

José Marmeleira

Jornalista e crítico nas áreas da cultura e da arte contemporânea. Colabora no jornal Público e na revista Ler. Está a realizar o doutoramento em Filosofia da Arte no âmbito do programa Doutoral de Filosofia da Ciência, Tecnologia, Arte e Sociedade no Instituto de Ciências Sociais (ICS-UNL).

 

Coleção António Cachola

Galeria Municipal do Porto

 

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Vistas da exposição 10000 anos depois entre Vénus e Marte. Coleção António Cachola na Galeria Municipal do Porto. Fotografias de Dinis Santos. Cortesia da Galeria Municipal do Porto. 

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